Tiago Pereira

A memória na ponta da língua

Tiago Pereira é filho de um músico, neto de uma matriarca da Beira Baixa e pai de A Música Portuguesa a Gostar dela Própria (MPGDP), uma recolha filmada de “manifestações musicais e coreográficas de vários géneros” que, mais do que ser sobre música ou tradição, é sobre a auto-estima de cada um, a memória de todos e o desejo de nivelar a atenção. Tiago não tem carta nem férias. Afirma que não gosta de carros velozes e aborrece-se quando não está a trabalhar, sofre de uma urgência messiânica naquilo que faz, em registar uma oralidade que irá desaparecer dentro de poucos anos.

O realizador ignora os estigmas do parolo e foleiro e grava freneticamente, sem parar para julgar, de Miranda do Douro à Ilha das Flores, colocando Conan Osíris no mesmo patamar de uma série de velhinhas e velhotes que cantam para fazerem companhia a si próprios. Já o alcunharam demasiadas vezes de Michel Giacometti do século XXI, numa comparação com o corso que mais recolhas etno-musicais fez em Portugal, esse petit grand nom foi exorcizado em 2015, no filme intitulado Porque não sou o Giacometti do século XXI. Como apelidá-lo então? Tiago prefere apresentar-se como “realizador que filma velhinhas”.

  • "Eu sou um activista da memória colectiva, mas digo que filmo velhinhas."
  • "Eu gravo o conhecimento das pessoas, não gravo porque é tradicional ou deixa de ser tradicional."
  • "Vivemos mais perto do negro do blues do que da senhora que canta na horta atrás da nossa casa."
  • "Quando as pessoas não têm as coisas programadas, vão ficando e perdem a noção do tempo."
  • "Estavas ali porque sim, davas tempo ao tempo. Tinhas tempo, pronto."
  • "Cada pessoa, no seu tempo, tem a sua importância, porque cada pessoa existe perante o tempo onde está."
  • "A tradição sempre foi contemporânea, se não estávamos na Roma Antiga e usávamos toga e sandálias."
  • "O fazer devagar às vezes é uma prática, mais do que um tempo em si."

É verdade que o trabalho do Tiago está focado na música e na memória, mas se estivermos atentos não é para aí que costuma apontar a sua câmara. A nossa conversa abre com um plano apertado, em modo auto-foco. “Como é que começaste a trabalhar com a auto-estima?” foi o que perguntámos. “A partir do momento em que sais das cidades e das auto-estradas e te começas a perder nas aldeias, a primeira coisa que entendes é que as pessoas acham que aquilo que têm para dar não é nada. Falas das cantigas e elas dizem-te sempre ‘mas o que eu sei não é nada de jeito’. O que é que isso quer dizer? O que é que quer dizer ‘eu não sei nada de jeito’? E depois percebi que tem tudo a ver com parâmetros. Obviamente as pessoas têm as televisões em casa e levam com uma grande parametrização do cantar. Cada vez mais só se canta em sítios controlados e então as pessoas ficam com a ideia que para cantar tens de ter uns sapatos de salto alto e maquilhagem e estar afinada e ter um júri que te vai avaliar, porque é isso que elas vêem nos programas.”

O interesse que Tiago demonstra perante as cantigas, lengalengas e dizeres que as pessoas sabem de cor tem então esse efeito de elevar a auto-estima? “Não é só interesse. O que acontece é mais engraçado do que isso. Eu dizia ‘deixe-se de lá dessas coisas porque eu estou mais interessado no seu cantar do que na televisão’. E quando gravava colocava imediatamente na Internet e as pessoas começavam a ver. E essas pessoas que viam estavam perto dela. Então havia uma espécie de viral local, que é tornares viral uma coisa apenas num sítio. Esse viral local levanta a auto-estima e aumenta literalmente as capacidades cognitivas das pessoas. Passado um dia, dois ou às vezes uma semana telefonavam ou mandavam-me uma mensagem a dizer ‘venha cá que eu agora já me lembro de mais’ ou seja, a auto-estima também tem a ver com as capacidades cognitivas que reforçam tudo aquilo que de facto conta. E assim as senhoras lembram-se de muitas coisas…”

A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria é um projecto tão basilar que foi uma questão de tempo até se começar a diversificar, dando origem a La Música Ibérica Queriéndose a Sí Misma, A Dança Portuguesa a Gostar dela Própria e Esporão & A Comida Portuguesa a Gostar dela Própria. Perguntámos a Tiago se o grande objectivo deste último era retirar as tradições gastronómicas da clandestinidade e a resposta fugiu aos parâmetros e ao tradicional. “Não tem a ver com tradições, até porque hoje em dia ‘tradição’ é uma palavra muito complicada, tal como aqueles chavões: património, identidade, autenticidade… Há palavras fáceis e palavras difíceis para descrever as coisas. Quer para o Esporão quer para a Música Portuguesa a Gostar Dela Própria eu gravo pessoas e gravo aquilo que as pessoas sabem. Na comida gravava as receitas que as pessoas sabiam.”

Quem explorar os episódios (22 até ao momento) descobre todo o tipo de receitas: algumas transmitidas de bisavós para avós e de pais para filhos, outras não. “Há um vídeo que eu gosto muito com duas senhoras em Évora a falar sobre sopa de Beldroegas. Uma dizia ‘ah, mas eu não ponho batata’ e a outra dizia ‘não, não, não, eu ponho batata’. Eu gravo o conhecimento das pessoas, não gravo porque é tradicional ou deixa de ser tradicional.”

Esporão & A Comida Portuguesa a Gostar dela Própria arrancou no final de 2015 com a co-autoria do Chef André Magalhães. Entre uma Cataplana de Litão e Algas e a Caldeirada à Fragateira há uma série de geografias, ingredientes regionais e partilha de conhecimento, de chefs reconhecidos, mas também de cozinheiros desconhecidos, sempre em modo viagem de sabores. Que prato ou petisco está indelevelmente gravado na memória do realizador? “Há uma sopa que a minha avó fazia que andei sempre à procura, chamava-se sopa de Santa Teresa. Tinha batatas, tomate e ovo cozido. Nunca mais a vi em lado nenhum. Às vezes eu pergunto se alguém sabe da sopa, mas nada. Nunca mais consegui encontrar. Procurei uma vez na Maria de Lourdes Modesto, mas tinha outro nome e não era exactamente como a minha avó fazia.

Às tantas quisemos saber se as cidades matam as raízes das coisas. “Acho que criam outras raízes, não matam, transformam. Tem a ver com tempos e com ciclos, com as migrações e uma certa pobreza que se vivia numa determinada altura do país no século XX. Muita gente veio para Lisboa e esqueceu as suas raízes por causa do o estigma da vergonha. Há algo que se perde,  uma certa sabedoria popular, que não encontras na universidade, não é oposta, é só outra sabedoria. Vês essa vergonha quando perguntas de onde é que as pessoas são e elas não te dizem o nome da aldeia, dizem sempre a cidade mais perto. Se perguntares a alguém de Abraveses, ela não vai dizer que é de Abraveses, mas sim de Viseu. Primeiro porque as pessoas acham que ninguém conhece e depois muito pelo estigma.”

Tiago lembra-se de um diálogo que ouviu no Porto que envolvia carroças, burros e dois interlocutores. “Um deles irritou-se e disse ‘Eu não concordo nadica, nadica com isso’. Obviamente era de Miranda do Douro e queria expressar que tinha orgulho em dizer nadica. Ele explicou que ter um burro e uma carroça era uma coisa tão cara como ter um carro em Lisboa, que as pessoas tinham de entender quanto é que custava um burro e uma carroça e que não era sinónimo de pobreza.”

Essa vergonha do que é rural ou parolo estaria ligada à vergonha de cantar em português? “Claro, dominou tudo. Era uma vergonha da pobreza. Era como se a pobreza fosse uma coisa maldita e tu não podias mostrar que eras pobre, então entravas naquela lógica do novo rico. Por isso é que tens as casas dos emigrantes, tens que mostrar que singraste na vida, que conseguiste contrariar por completo o estigma, a que de certa forma estavas condenado. Mas depois também há outras pessoas que vieram para Lisboa e que criaram raízes de Lisboa, com fragmentos de muitas outras culturas, são as chamadas raízes urbanas, uma mescla de tudo e de mais alguma coisa que não podes definir. Há um episódio no Esporão & A Comida Portuguesa com o chef Hugo Brito, com uma receita de coração de porco do livro de Alfredo Saramago “Cozinha de Lisboa e Seu Termo” que é muito isso, é o único episódio com um prato completamente lisboeta, que vai exactamente pela abrangência. Não estreita, não define essa questão do tradicional ou de onde é que vem e abre tudo, o tal coração que é cravejado com cravinhos, o cravinho veio de não sei onde e depois veio parar aqui e já é uma receita de Lisboa que está aberta a todas as culturas que cá estão hoje em dia.”

Parece-nos que a existência da MPGDP desde 2011 contribuiu para que mais pessoas perdessem a vergonha de cantar e ouvir cantar em português. “Hoje em dia a divulgação de informação é muito grande. Tens Internet, rádio e televisão e um acesso muito mais fácil às coisas. Durante muito tempo recebias aquilo que aparecia e a cultura que reinava era anglo-saxónica. Tinhas 14 anos e uma banda de garagem, não ias cantar em português. Normalmente o que tu vês de grupos novos de pop ou de rock são imitações daquilo que eles gostam e depois começam a transformar e muitas vezes, felizmente, transformam-se noutra coisa e deixam o ponto de partida. Diz-se muitas vezes e eu disse esta frase durante muito tempo que nós, especialmente nas grandes cidades em Portugal, vivemos mais perto do negro do blues do que da senhora que canta na horta atrás da nossa casa ou da nossa própria avó.”

No contexto de uma bossa nova Vinicius de Moraes escrevia para tanta gente cantar: “Já dancei o twist até demais / Mas não sei / Me cansei / Do calipso ao chá chá chá / Só danço samba / Só danço samba, vai, vai, vai, vai, vai”. “Sempre tivemos mais perto dessa tal cultura porque era essa cultura que toda a gente importava. Depois o que aconteceu foi uma descoberta da métrica. O que é um bocado estúpido, porque se reparares tu tens poetas populares que sempre inventaram em décimas, sem ler nem escrever, e que deram a volta à métrica mesmo nas lógicas dos trava-línguas. Eles dizem muito depressa ‘já disse à mãe do cário que mandasse o carário embora, é cário, é carário, é cário, nós não queremos mais carários agora.’ A métrica disto é super difícil e as velhinhas sempre a usaram, mas não vias cantautores ou músicos portugueses a agarrar nisto, simplesmente porque não tinham o conhecimento. Mesmo sabendo que o Giacometti abriu toda uma nova lógica, foi naquele tempo e para as pessoas daquela altura. O acesso à música popular sempre foi difícil e essa é uma das grandes questões que a MPGDP veio resolver: tornar fácil o acesso à cultura musical portuguesa feita pela velhinha, porque tu vais lá e encontras tudo. Antes tinhas algumas coisas do Ernesto Faria de Oliveira na Internet a partir da Universidade do Minho, que o Domingos Morais tinha posto, mas muito pouca gente conhecia, o Giacometti era muito difícil de encontrar porque ainda não tinha saído a edição completa do Público do José Moças. Havia uns vídeos que circulavam, uma espécie quase de rádio pirata, com os time codes em cima. Os áudios dele não existiam…, o Armando Leça só foi editado no Alentejo há muito pouco tempo e desde 1939 que estava não sei onde. O que era português era sempre essa coisa da condição miserável, do portuguesinho que não inventa nada e que não faz nada de jeito. Havia muito isso. A partir do momento em que abriste a biblioteca pudeste descobrir outras coisas. Os Diabo na Cruz são muito importantes nisso. Quando o Jorge Cruz começa, a partir da sua biblioteca, a fazer músicas e discos, começa toda uma cultura a chegar a outras pessoas que provavelmente só ouviam música rock cantada em inglês.” E assim surge o rock rural português. “Eu acho que a partir do momento em que tu, na primeira década do século XXI tens as editoras Amor Fúria e Flor Caveira, tens o B Fachada, tens tudo isso, abriu muito para o sítio onde estamos hoje, o cantar em português sem medo.”

E terá acontecido o mesmo com a gastronomia? “Também havia uma negação dos produtos tradicionais, teve de ser um Fausto Airoldi a puxar a sardinha para cima, não foi um português. Quando chegou cá começou a fazer pratos de fine dining com ingredientes portugueses, só depois é que os chefs começaram todos a falar do produto português, até tens aquela frase incrível do Alexandre Silva do Loco, que diz: “Para mim cozinha portuguesa não é carne de porco à alentejana com amêijoas vietnamitas e porco espanhol”. Eu acho que é isso que é pertinente. Por mais que possa parecer que toca e toca muitas vezes a música, são dois caminhos bastante diferentes.” Fausto Airoldi, apesar de ter nascido em Moçambique, esteve 30 anos em Portugal, antes de partir para Macau, tudo destinos com menus escritos em português. Já sabemos da demanda da sopa perdida, mas e restaurantes favoritos? Quais foram os mais marcantes depois de tanta estrada e de tantos locais de filmagens? “A gastronomia de estrada é uma coisa muito complicada, a maior parte dos restaurantes fora de Lisboa e Porto têm o problema da diversidade. Ou tens restaurantes que são claramente de comida regional, ou ainda estão presos à questão de ter sempre a picanha, o polvo, o bacalhau à lagareiro, os rojões à minhota, aquelas refeições que têm sempre e não passas daí. Além de serem sempre os mesmos pratos, são sempre os mesmos pratos em todos os sítios, tanto faz se estás em São Pedro do Sul, em Fafe ou em Chaves. No Alentejo é diferente, tens muita comida regional e aqueles ex-líbris, a sopa de cação,  os secretos de porco preto…” Mas eis que duas tascas de boa memória surgem na conversa, ambas regionais, claro. “Lembro-me que fui à Serra da Aboboreira, ao pé de Baião e de Amarante e havia a Tasquinha do Fumo. Era uma tasca incrível como aquela Tasca do Petrol, em Monchique, que também é incrível, são duas tascas onde tu comes e ficas pfffffff! Às vezes nem me lembro dos nomes.”

E o trabalho dos chefs e dos festivais gastronómicos, têm encurtado a distância entre o produto e o prato, entre o mercado e o campo? “Sim, claro, mas, por muito que isto custe ouvir, isso é só para uma elite, porque não chega à maior parte das pessoas. existe para quem tem dinheiro.” No episódio 16 d’Esporão & A Comida Portuguesa a Gostar Dela Própria o chef do Feitoria, João Rodrigues, cozinha uma presa de porco preto com um coração de alface, neste caso uma alface D.O.C. (Denominação de Origem Comentada) porque o Sr. Domingos (a.k.a. Sr. Gatilho) comenta o porquê das suas alfaces, plantadas em Reguengos de Monsaraz, serem diferentes das demais. Citamos do vídeo: “o mais importante é a gente saber o que vai comer. Se nos servem uma alface é preciso saber como é que ela foi tratada. Às vezes vou vender no mercado e há pessoas que até dizem assim ‘ali o fulano vende mais barato ou não sei quantos’ e eu tenho dito ‘e essa planta vem de aonde?’ e dizem ‘não sei’. É isso que é importante. Nós estamos aqui, semeamos, sabemos o que fazemos e colhemos. Puxa uma grande responsabilidade para cima de mim, para cumprir. Não vou fazer uma coisa qualquer. Eu já vendo no mercado desde os 14 anos, tenho 84… já é há uns anos.” O prato de João Rodrigues homenageia uma das festas mais simbólicas da sociedade portuguesa – a matança do porco – e justifica: “as pessoas estão cada vez mais afastadas das origens e encaram a vida de uma forma intensa, com muito mais velocidade, muito automática. Têm pouco tempo para parar. Nos dias que correm o tempo é quase um luxo ou o maior luxo da nossa sociedade.”

Voltando ao homem da máquina de filmar: “muitas vezes o consumidor normal não sabe de onde é que vem o produto, se calhar as pessoas deviam fazer mais perguntas. Num restaurante não sei de onde é que vem aquele polvo, aquela picanha, aquelas bochechas de porco. Ainda é muito uma coisa de chefs, mas para eles terem essa preocupação, também precisam de estar noutro nível que lhes permite estarem folgados para terem essa preocupação do nível económico.” E é neste momento que percebemos, Tiago inventou para si próprio um trabalho que o obriga a regressar constantemente às origens. “Foi sem querer, é a tal questão dos mitos gregos, quando foges do teu destino, ele cumpre-se. Eu gravo música tradicional, o meu pai tocava música tradicional… é óbvio que eu estou sempre a regressar às origens. Eu cresci com minha avó no Estreito, em Oleiros. A minha avó, as irmãs dela e as primas… as mulheres é que faziam tudo, tomavam conta dos filhos, protegiam os maridos, iam para as hortas, tomavam conta dos animais… Elas faziam os enchidos do porco, o homem só metia lá a faca e depois bebia com os amigos, e depois as mulheres preparavam a carne, grelhavam, fritavam e faziam as sopas. Sempre as mulheres e ainda tinham tempo para tomar conta dos netos. Não era fácil. Eu consegui arranjar um trabalho que me lembra constantemente essa questão das mulheres. E ainda continuo a ver isso, as acções que têm a ver com a alimentação e com o cuidar são feitas pelas mulheres. Vivi com a minha avó até aos nove anos, mas desde pequeno e até aos 12 anos eu passava três meses de verão na aldeia dela, portanto tenho muitas memórias da aldeia que persistem naquilo que eu faço.”

Infelizmente o neto não tem nenhum registo da avó a cantar ou a tocar. “Lembro-me de uma vez o meu pai ir a casa da minha avó e ter um adufe que pousou algures e quando voltámos ela tinha o adufe na mão como se tivesse sabido tocar a vida toda, mas não tocou. A verdade é que ninguém agarra num adufe assim, se não souber tocar. As coisas mudam mesmo muito, porque na Beira Baixa tocava-se muito adufe. Nós estamos a assistir ao declínio das coisas. Esta geração nunca viveu o pico e isso é um bocado triste para mim, para aquilo que eu faço.”

Na sala da casa de Tiago, com máscaras e peças de barro tradicionais, podemos ver o cartaz do filme Porque não sou o Giacometti do século XXI, entre outras peças, mas também outro que anunciava o primeiro piquenique musical da MPGDP. “O primeiro foi mítico, acho que ninguém se vai esquecer durante muito tempo. Foi em Monforte da Beira. A MPGDP tinha de fazer um aniversário e eu não queria uma festa banal com palco e músicos. Como em Novembro tinha estado a filmar em Monforte da Beira e dei-me bem com a Presidente da Junta, disse-lhe ‘olhe, eu gostava de fazer um piquenique, não faço a mínima ideia de como é que isto vai acontecer, digo às pessoas para virem, cada um traz o seu farnel e o que quer tocar e pronto’, depois aquilo foi uma loucura, vieram dois grupos corais de Serpa, dois grupos corais de Viana do Alentejo, um grupo de bombos da Marinha Grande, um grupo de bombos de Alcochete, dois grupos do Minho de mulheres que cantam, vieram pessoas de gaitas de foles, até o Jorge Cruz dos Diabo na Cruz… aquilo de repente estava uma loucura de 600 pessoas a cantar e a dançar, assim espontaneamente só porque lhes apetecia.” Houve muita gente que demorou o dobro de tempo em transporte do que o tempo que esteve no piquenique. Tentaram replicar o espírito do piquenique inicial “mas da última vez tivemos azar porque estava a chover e tivemos de ir para um pavilhão em Viana do Castelo. Da outra vez foi no Jardim da Estrela e portanto dava sempre pontos de fuga, as pessoas não ficavam, porque depois iam comer não sei aonde e desapareciam durante não sei quantas horas… Quando as pessoas não têm as coisas programadas, vão ficando e perdem a noção do tempo. Hoje em dia toda a gente tem tudo programado e ali não havia programação para nada. Uma coisa engraçada foi a senhora da Junta de Freguesia a dizer ‘ah eu tenho aqui a SPA (Sociedade Portuguesa de Autores) a perguntar que músicas é que vamos tocar’, mas nós não podíamos programar nada, as pessoas iam tocar o que lhes apetecesse no momento. Tu tens esta ideia de teres tudo programado, vais comer àquela hora e a seguir vais fazer aquilo e dizes no evento do Facebook que é naquele dia… ali não havia nada programado, ninguém sabia o que ia acontecer. Chegavas, comias quando te apetecia e se alguém tocasse tu podias tocar ou não tocar. Estavas ali porque sim, davas tempo ao tempo. Tinhas tempo, pronto. O período fértil foi entre a 1h da tarde e as 5h da tarde, quatro horas intensas.”

E como lidas com esse título de Giacometti do Século XXI? Com ironia? “Já lidei pior. Nunca gostei muito.  Há uma altura em que tu percebes que cada pessoa tem a sua importância no tempo em que está e é um bocado isso. O Armando Leça tem sua importância naquela altura, como o Artur Santos, como o Giacometti tem, porque é um bocado impossível comparares as pessoas, porque acontece tudo em tempos diferentes. O Armando Leça não tinha electricidade, não podia ir às aldeias, tinha um gravador que precisava de ligar à corrente e tinha que chamar as pessoas que vinham de transportes até a cidade mais perto onde houvesse luz, porque a maior parte delas não tinha. A seguir o Giacometti com o Nagra, não podia ir a todo o lado também. Era um gravador de bobinas a pilhas e super pesado. Hoje em dia nós vamos com uns gravadorzinhos de nada e uma câmara de filmar, gravamos e logo a seguir metemos aquilo na Internet. Uma vez gravei o Zeca Medeiros nos Açores de manhã, ele ia para o Faial e quando aterrou já tinha 400 likes no vídeo. E ele ficou ‘mas o que é que aconteceu? O que é que…?’ Cada pessoa, no seu tempo, tem a sua importância, porque cada pessoa existe perante o tempo onde está. Eu faço aquilo no meu tempo, numa era digital.”

Então como se apresenta, profissionalmente, o realizador e mentor da MPGDP, ‘activista da memória colectiva’? “Eu sou um activista da memória colectiva, mas digo que filmo velhinhas.” E o que faz o realizador de velhinhas e cozinheiros quando não está a trabalhar? “Trabalho. Não consigo, aborreço-me. Tenho que fazer coisas. Paro quando estou cansado, isso é um processo de descanso que é outra coisa, mas durante muito tempo quando parava tinha sempre a consciência de que alguém estava a morrer e eu não estava a filmar.” O realizador vem de uma linhagem de documentaristas dedicados à gravação de uma tradição oral de pessoas que trabalhavam no campo nos anos 30 e 40 e que está a desaparecer. “Hoje em dia quem memoriza coisas são os actores e cantores profissionais, as outras pessoas não precisam. Há de surgir outra tradição que tem a ver com a era digital e será completamente diferente. Hoje em dia ninguém memoriza 200 músicas de cor, porque vê tudo no telemóvel. Mas as velhinhas que estão nas aldeias dizem 200 poemas de memória, sem saberem ler nem escrever. Quando encontras pessoas que mantêm a tradição oral viva, obviamente tu gravas. Portanto, quando tenho tempo, tenho também a noção que este trabalho é urgente, porque estas pessoas vão morrer. Estamos a falar de 2030, é mais uma década.”

O processo de recolha começa então pelos mais velhos? “Gravo os mais velhos, como gravo os mais novos. Gravo os novos que aprenderam com os mais velhos e que fazem questão de saber canções de cor. Esta história do cante alentejano ser Património Imaterial da Humanidade ajuda a ter pessoas mais novas. Há miúdos de seis, dez anos que cantam e fazem grupos corais e que sabem as tais modas. Muitos deles inventam modas o que é óptimo, porque se inventas, sabes de cor. É tudo um processo de gravar aquilo que está a desaparecer.”

Grande parte da matéria que as gerações de portugueses nascidas na primeira metade do século XX deram na escola, baseou-se em lengalengas e mnemónicas, fossem canções didácticas, nomes de serras, rios e afluentes ou as principais estações da linha do comboio transiberiano que alguns septuagenários ainda sabem na ponta da língua: Omsk, tomsk, novossibirsk, irkutsk e vladivostok. “Vem muito do Giordano Bruno do Renascimento que já tinha a tal questão do teatro de memória que, a partir daí, estabelece ligações entre cores, posições, sítios, imagens, geografias, para lembrar as coisas. E os velhinhos têm muitas dicas para se lembrar das coisas por associação. Há um homem que eu gravei que dizia ‘o vinho do Porto dá muita memória e tem muita ciência’. Tudo o que é repentismo, tem muito essa questão de ter as mnemónicas certas, para te lembrares do que rima com o quê. Quando eles estão sobre a acção do vinho ficam mais soltos e então é mais fácil, como têm as mnemónicas, libertam-se. Inventam não sei quê e tau, aquilo bate certo. São os precursores do hip-hop. O tal senhor que foi poeta repentista a vida toda, chegava ao pé de ti e dizia ‘olhe, quer um poema a que fundamento?’” Fundamento é o mesmo que mote e o poeta dá sempre a volta. “Tu dizias ‘quero um à morte’ e ele dizia um à morte à tua frente, ‘quero um sobre aquela casa amarela’ e ele fazia-te um sobre a casa amarela.”

Trata-se também de, com a ajuda de músicos contemporâneos, dar novas roupagens a velhas canções? “A tradição sempre foi contemporânea, se não estávamos na Roma Antiga e usávamos toga e sandálias. Todos têm a importância que têm no tempo em que têm e tudo isto acompanha o tempo. A tradição que estagna acaba por morrer. Por exemplo os caretos do Ousilhão sempre tiveram tradição, aquilo é um rito iniciático para rapazes na aldeia de Ousilhão, mas numa certa altura deixaram de nascer homens, portanto se as mulheres não vestissem o fato e os caretos, não havia ninguém, não iam para a rua e a tradição morria. Portanto tiveram de aceitar a transformação da tradição. De certa forma não procuro roupagens nenhumas. O que eu procuro com o meu trabalho é nivelar a atenção. Acho que vivemos num mundo obcecado com os picos de atenção da televisão, etc. e que os meios de comunicação não dão importância a todas as coisas. A música não tem hierarquias, portanto eu tanto quero dar importância ao músico da filarmónica, como à velhinha que canta sozinha,  como ao B Fachada, ao Jorge Cruz ou à Márcia. Por isso gravo desde o Conan Osíris até as velhinhas que encontro, porque quero que as pessoas olhem para elas.”

Então o teu objectivo maquiavélico e megalómano implica gravar os milhões de portugueses que cantam sozinhos, as velhinhas primeiro? “Sim, sempre a gravar, porque aquilo que eu procuro n’A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, e que de certa forma também vai dar à gastronomia, é o sentido primordial das coisas. Eu quero gravar a senhora que está a cozinhar e a cantar para ela própria, a senhora que está num tear e a cantar para ela própria. É o canto no sentido primordial, porque toda a gente sempre cantou. Hoje em dia está estigmatizado, se cantas sozinho na rua és bêbado ou maluco. Há muitos anos atrás as pessoas cantavam para fazer companhia a si próprias, cantavam porque sim, só depois é que a sociedade começou cilindrar isso. Já não cantas porque sim e o que é importante é fazer com que as pessoas cantem porque sim, cantar fora dos ambientes controlados, é isso que eu quero nivelar: essa necessidade de cantar.”

E surge um exemplo gastronómico: “Lembro-me de um vídeo incrível do Esporão com uma senhora a cortar um pepino só para ela, vai fazer um gaspacho que é só pepino, água, alho e um bocadinho de nada de azeite. Mas a forma como ela corta o pepino sem sequer olhar é impressionante. No final aquilo está perfeitamente migado. É um bocado nesse sentido, tu procuras sempre aquilo que vem da génese, de ser genésico, seja cozinhar, cantar ou dançar.”

O que é para ti a memória de um povo? É muito o lado privado? “Primeiro temos que definir o que é povo, para mim é sempre no sentido antropológico e portanto são as pessoas. Eu gravo a memória das pessoas, portanto é mais privado. Tem muito a ver com saber ouvir as pessoas, hoje em dia quase ninguém sabe escutar. É curioso que tu em Lisboa tens a expressão ‘olha uma coisa’ mas chegas ao Alentejo e dizes ‘escuta uma coisa’. Estamos tão habituados a olhar e tão pouco a escutar. Eu escuto muitas pessoas, dou-lhes aquele espaço onde elas podem ser aquilo que elas quiserem. Depois estou lá e recebo, muitas vezes só depois de as ter ouvido uma hora a contar as doenças ou as desgraças.”

“Estamos aqui a falar do ‘fazer devagar’, mas às vezes tens que saber fazer devagar com pouco tempo. O fazer devagar às vezes é uma prática, mais do que um tempo em si. Às vezes tens pouco tempo e consegues fazer devagar na mesma, eu faço isso. Lembro-me do Júlio Pereira Pires, um homem impressionante que já morreu. A primeira vez que gravei com ele, levei alguém da biblioteca de Vila Velha de Ródão que lhe fez uma pergunta, porque ele tirava o mau olhado. Primeiro que ele chegasse à conclusão do mau olhado, demorou para aí uma hora a contar a história da doença da mulher. Acontece muitas vezes, mas eu nunca paro a câmara.” Tiago é então um confidente, um psicólogo e por vezes um filho ou neto emprestado. “Há um lado social muito forte na música portuguesa a gostar dela própria que tem a ver com esta troca, eu vou lá eles dão-me isto, a seguir eu distribuo aquilo que eles me deram. Perguntam-me sempre ‘para onde é que me levam?’ e eu digo: ’para o mundo’ e às vezes o mundo devolve-lhes. Esse processo de descobrirem coisas neles que não sabiam que tinham, também é muito importante.”

Quantas vezes não sobrevivemos graças à generosidade de estranhos, certo? “As pessoas são sempre generosas. O homem mais alegre que eu já vi na minha vida vive em Chamarritas, na ilha do Pico. Estava sempre completamente super alegre e só dizia ‘rapaziada, vamos à folia!’  Eu gravei com ele e no fim, alguém me disse que a mulher dele estava a morrer em casa. E ela morreu no dia a seguir. Às vezes tens esta necessidade de te olhar para o espelho e perguntares quem és tu para mereceres tanta generosidade. Porque é que as pessoas deixam de fazer as suas coisas para irem cantar para ti? Porquê? Porque há de ser assim?”

Será que Tiago tem algum processo para viver mais devagar? Ou para evitar ser sugado pelas redes que nos roubam a atenção? “Eu sou super rápido e odeio tecnologia. Não tenho processos, gosto muito de andar a pé para pensar. É das tais coisas que eu faço devagar. Eu não tenho carta de condução e não gosto de andar depressa de carro. Quanto à tecnologia é cada vez mais um processo económico em vez de ser uma ajuda para a vida, torna-te num escravo dependente de actualizações e novos modelos e portanto tento fugir daí.”

Sem carta seria impossível fazeres sozinho os teus projectos. “Mesmo com carta seria impossível, nunca poderia ser um trabalho solitário, precisas sempre de alguém. É importante ter pessoas contigo que não dominem o tipo de coisas que gravas para te permitir ter uma certa sanidade mental e não achares que às vezes estás a sonhar e que aquilo de facto está mesmo a acontecer. Eu gravo pessoas, na sua maioria, no limite das suas capacidades e então há sempre coisas que te impressionam. É como a Dona Rosário do Algarve que hoje em dia tem 103 anos e toca concertina. Eu gravei-a quando ela tinha 99 anos e aquilo foi muito forte. A filha contava que a mãe acordava a meio da noite e punha-se a tocar concertina sozinha. Uma senhora de 103 anos viciada em concertina? Às vezes precisas de te beliscar,  de ver nos olhos das outras pessoas que não estás maluco, que aquilo de facto tem uma força humana assinalável, caso contrário habituas-te a viver numa bolha e achas que é tudo assim.”

Como é que se ensina alguém a não achar uma coisa foleira? “Discutindo o gosto. As pessoas hoje em dia discutem o que é bom ou mau. Isso não faz sentido em termos musicais. Por exemplo a polémica toda com o Conan Osíris, ‘aquilo é horrível, aquilo é mau, ele canta mal…’ Temos de ser altos musicólogos e saber tudo de frequências, de todas as notas e ter ouvidos absolutos para poder definir se ele canta bem ou mal. Não sabemos, não surgem esses parâmetros para definir quem canta bem. Para perceber porque é que gostamos dele ou não é preciso desmontar o gosto. Como é que cresceste? Onde é que cresceste? Com quem é que te davas? O que é que ouvias? Com quem é que ouvias? O que é que comias? E aí começas a perceber e a desmontar o que é que te levou a gostar das coisas e se calhar ficas mais aberto a gostar de outras coisas e entender outras coisas. A única coisa que tu podes discutir são os gostos. Tudo o resto é que não. É uma parvoíce dizer isso que os gostos não se discutem. Não! Só podes discutir o gosto. O resto não podes discutir porque é demasiado concreto para ser discutido. Há coisas que são ciências exactas, então musicalmente isso não acaba, é uma discussão sem fim. Vais definir o quê? Se é mau? Se é bom?”

Tiago Pereira foi o primeiro público-alvo de Tiago Pereira. “A MPGDP serviu para desmontar todos os meus preconceitos. Preconceito é desconhecimento, à medida que tu vais conhecendo as coisas dizes ‘ah eu não sabia!’. Isso é a história da minha vida desde o princípio. Hoje em dia continuo a ter muitos preconceitos mas sou 70 vezes menos preconceituoso do que quando comecei e foi mesmo por profundo desconhecimento.”

Se falasses com a tua versão de há 15 anos o que lhe dizias? “Era um imbecil, um tótó que não sabia nada de nada. É o problema de muita gente: ter preconceitos de coisas que não fazem a mínima ideia do que são. É a tal questão da educação. Tu não és educado na escola a fazer perguntas, não és habituado a ser curioso e portanto não és curioso a vida toda. Ou és curioso por natureza e instigas isso ou então nunca vais perguntar os porquês. Há um filme em que eu entrevisto o Bitocas que é um músico que inventa muitas coisas e tem uma história muita gira sobre esta questão da tradição das coisas. A mãe dele fazia um bolo em dois tabuleiros e ele foi perguntar à mãe ‘porque é que fazes o bolo em dois tabuleiros?’ A mãe respondeu ‘porque a tua tia já fazia o bolo em dois tabuleiros’ e ele foi perguntar à tia porque é que ela fazia o bolo em dois tabuleiros e ela disse ‘porque a avó já fazia o bolo em dois tabuleiros’ e ele foi perguntar à avó. Quando chegou à avó, ela disse-lhe: ‘como eu não tinha um tabuleiro grande, fiz em dois tabuleiros’.” A vergonha de perguntar perpetua tradições ocas e bacocas, mas felizmente Tiago, a.k.a. Velhinha Pereira, não tem papas nas perguntas e vai ao fundo das coisas como quem vai ao fundo do tacho. “Contra o estigma, gravar, gravar!” poderia ser o seu grito de guerra e perante esta luta pela auto-estima há quaije-nadica a acrescentar, apenas um dizer clássico de Miranda do Douro: que nos faga bun porbeito.

Tiago Pereira

A memória na ponta da língua

Tiago Pereira é filho de um músico, neto de uma matriarca da Beira Baixa e pai de A Música Portuguesa a Gostar dela Própria (MPGDP), uma recolha filmada de “manifestações musicais e coreográficas de vários géneros” que, mais do que ser sobre música ou tradição, é sobre a auto-estima de cada um, a memória de todos e o desejo de nivelar a atenção. Tiago não tem carta nem férias. Afirma que não gosta de carros velozes e aborrece-se quando não está a trabalhar, sofre de uma urgência messiânica naquilo que faz, em registar uma oralidade que irá desaparecer dentro de poucos anos.

O realizador ignora os estigmas do parolo e foleiro e grava freneticamente, sem parar para julgar, de Miranda do Douro à Ilha das Flores, colocando Conan Osíris no mesmo patamar de uma série de velhinhas e velhotes que cantam para fazerem companhia a si próprios. Já o alcunharam demasiadas vezes de Michel Giacometti do século XXI, numa comparação com o corso que mais recolhas etno-musicais fez em Portugal, esse petit grand nom foi exorcizado em 2015, no filme intitulado Porque não sou o Giacometti do século XXI. Como apelidá-lo então? Tiago prefere apresentar-se como “realizador que filma velhinhas”.

  • "Eu sou um activista da memória colectiva, mas digo que filmo velhinhas."
  • "Eu gravo o conhecimento das pessoas, não gravo porque é tradicional ou deixa de ser tradicional."
  • "Vivemos mais perto do negro do blues do que da senhora que canta na horta atrás da nossa casa."
  • "Quando as pessoas não têm as coisas programadas, vão ficando e perdem a noção do tempo."
  • "Estavas ali porque sim, davas tempo ao tempo. Tinhas tempo, pronto."
  • "Cada pessoa, no seu tempo, tem a sua importância, porque cada pessoa existe perante o tempo onde está."
  • "A tradição sempre foi contemporânea, se não estávamos na Roma Antiga e usávamos toga e sandálias."
  • "O fazer devagar às vezes é uma prática, mais do que um tempo em si."

É verdade que o trabalho do Tiago está focado na música e na memória, mas se estivermos atentos não é para aí que costuma apontar a sua câmara. A nossa conversa abre com um plano apertado, em modo auto-foco. “Como é que começaste a trabalhar com a auto-estima?” foi o que perguntámos. “A partir do momento em que sais das cidades e das auto-estradas e te começas a perder nas aldeias, a primeira coisa que entendes é que as pessoas acham que aquilo que têm para dar não é nada. Falas das cantigas e elas dizem-te sempre ‘mas o que eu sei não é nada de jeito’. O que é que isso quer dizer? O que é que quer dizer ‘eu não sei nada de jeito’? E depois percebi que tem tudo a ver com parâmetros. Obviamente as pessoas têm as televisões em casa e levam com uma grande parametrização do cantar. Cada vez mais só se canta em sítios controlados e então as pessoas ficam com a ideia que para cantar tens de ter uns sapatos de salto alto e maquilhagem e estar afinada e ter um júri que te vai avaliar, porque é isso que elas vêem nos programas.”

O interesse que Tiago demonstra perante as cantigas, lengalengas e dizeres que as pessoas sabem de cor tem então esse efeito de elevar a auto-estima? “Não é só interesse. O que acontece é mais engraçado do que isso. Eu dizia ‘deixe-se de lá dessas coisas porque eu estou mais interessado no seu cantar do que na televisão’. E quando gravava colocava imediatamente na Internet e as pessoas começavam a ver. E essas pessoas que viam estavam perto dela. Então havia uma espécie de viral local, que é tornares viral uma coisa apenas num sítio. Esse viral local levanta a auto-estima e aumenta literalmente as capacidades cognitivas das pessoas. Passado um dia, dois ou às vezes uma semana telefonavam ou mandavam-me uma mensagem a dizer ‘venha cá que eu agora já me lembro de mais’ ou seja, a auto-estima também tem a ver com as capacidades cognitivas que reforçam tudo aquilo que de facto conta. E assim as senhoras lembram-se de muitas coisas…”