Francisca Gorjão Henriques
Entrevista realizada dia 8 de Maio de 2019 durante um almoço na mesa comunitária do restaurante Mezze, mercado de Arroios, em Lisboa.
O mistério da bétula sem folhas
Francisca Gorjão Henriques é jornalista freelancer, a quinta de seis filhos, presidente da Associação Pão a Pão (que gere o restaurante de refugiados Mezze) e tem uma capacidade rara nos dias apressados em que vivemos: é capaz de se sentar no sofá de sua casa e ficar sem fazer nada durante um bom bocado, sem livros, sem telemóvel, sem distrações para além das árvores do seu jardim. Aprendeu a petrificar um bocadinho com os jardins de pedra japoneses, mas o primeiro grande travão da sua vida aconteceu-lhe aos 26 anos, na forma da primeira filha, a Laura.
Hoje, com 47 anos, vive a dois tempos, apressado, lento, lento, apressado.
A nossa conversa aconteceu sem relógios nem interrupções, na mesa partilhada do Mezze, com pão, comida, bebida, aromas, risos e ruídos à mistura. Quando finalmente nos levantámos, a sacudir palavras do peito, o restaurante estava deserto, com excepção dos preparativos para o jantar vindouro.
"Num jardim de pedra nada mexe, é a imobilidade total. Sentes muito fortemente a suspensão do tempo."
"Vivo à minha velocidade."
"É muito fácil viciares-te na velocidade, dá emoção."
"Quando a minha filha nasceu eu dizia muitas vezes que ela era a materialização do tempo. Através dela eu conseguia ver o tempo passar."
"Sou perfeitamente capaz de me sentar no sofá e ficar sem fazer nada durante um bom bocado. Sem pegar no telemóvel, num livro, nada."
"Pelos vistos escrever à mão é uma coisa arcaica."
"As pessoas dedicarem-se inteiramente a uma coisa e fazerem-na o melhor possível (...) é algo que me comove."
"Há um tipo de conhecimento ligado à terra que é muito pouco valorizado."
Em 20 anos de entrevistas, reportagens e artigos para o jornal Público, há uma história carregada de vagar que destaca, sobre a Via Algarviana que percorreu a pé durante 12 dias, na qual podemos ler: “Não se chega depressa a lugar nenhum, porque essa palavra não existe quando se percorre um caminho assim.” Caminhemos, então. “Eu gosto imenso de caminhar e ainda hoje me lembro muito daquela reportagem.” No início da sua vida profissional a jovem Francisca esteve destacada na área de política internacional, especializada no Oriente. Será que os povos orientais a ajudaram a domar a típica velocidade ocidental do dia-a-dia? “Gostava de ter aprendido muito mais. Cada vez que eu ia era para fazer 20 reportagens em 4 dias. Passei lá períodos mais longos, mas na verdade foi sempre com trabalho muito intenso, sem tempo para respirar. Mas uma das paragens, em Tóquio, levou-me a um daqueles jardins de pedra maravilhosos e de repente aí, sentes realmente uma pausa. Mais ainda do que olhar para uma árvore, em que há sempre o vento que faz abanar as folhas ou um ramo, ou para um campo onde abanam as flores, num jardim de pedra nada mexe, é a imobilidade total. Sentes muito fortemente a suspensão do tempo.”
Naqueles tempos a Francisca não estava ainda convencida da necessidade de acalmar o ritmo. “Essa hipótese só veio mais tarde. É muito fácil viciares-te na velocidade, dá emoção. Quando estamos a começar um projecto ou a aprender uma profissão, há uma certa voragem, se não há é mau sinal. Queremos viver tudo e dar ao máximo. Sentimos que temos de aproveitar os momentos de aprendizagem, depois queres produzir e mostrar que aprendeste e que agora até já fazes melhor do que há dois meses.”
A Francisca de 47 anos teria algo a fizer à Francisca de 27 se a encontrasse numa encruzilhada temporal? “Dir-lhe-ia para ter calma. Mas a minha versão mais nova provavelmente não iria ouvir, até porque as coisas têm o seu tempo, certo?”
Será que a maternidade traz uma nova noção de tempo? “É muito engraçado. Quando a minha filha nasceu eu dizia muitas vezes que ela era a materialização do tempo. Através dela eu conseguia ver o tempo passar. Porque quando tu tens 26, 28, 38 anos, és a mesma pessoa, enquanto que as crianças mudam de dia para dia, depois de semana para semana e de mês a mês. Tu vês o tempo a materializar-se, o que me impressionava imenso.”
Conhecer o outro através do jornalismo, da família e da imigração, três frentes do trabalho da Francisca. “O outro sou eu, na verdade. O Mário de Sá-Carneiro dizia “eu não sou eu nem sou o outro, sou qualquer coisa de intermédio”. Em última análise tu não fazes nada que não esteja em ti fazer. Se de repente eu me vejo envolvida num projecto de integração com refugiados do Médio Oriente é porque esse impulso está em mim.”
Francisca acredita que quem tem uma vida privilegiada, ou seja, sem a necessidade urgente de sobreviver, o mínimo que tem a fazer é ajudar os outros. E daqui partimos para a única parte ensaiada da nossa conversa (aquela que já repetiu a muitos entrevistadores) em que nos explicou como se construíram as paredes à volta de duas mãos cheias de refugiados sírios.
A ideia nasceu de uma conversa, num almoço, “entre mim e umas amigas, depois da conversa, não fazer seria quase imoral.” A designer Rita Melo e a jovem estudante de arquitectura Alaa (acolhida pela família de Francisca) foram duas das intervenientes. Quando Alaa confessou que a sua maior dose de saudades ia para o pão da Síria, primeiro estranharam não existir pão árabe em Lisboa e depois pensaram em abrir uma padaria. “Evoluímos para o restaurante porque o pão é que vai buscar as coisas todas que estão em cima da mesa e não faz sentido comer pão com queijo, como nós portugueses fazemos. E até achámos piada à ideia do restaurante. Neste caso o que acrescenta é que também arranjamos trabalho às pessoas que estão a chegar, e aproveitamos uma parte tão rica da sua identidade, que pode ser partilhada com a sua comunidade de acolhimento.”
Segundo a entrevistadora feita entrevistada, em Portugal não há inércia em demonstrar solidariedade, mas “às vezes as pessoas não sabem muito bem como ajudar. Porque é difícil. O sistema não está montado para que as pessoas tenham tempo para se envolverem em projectos cívicos, políticos, associativos.” Esse tempo terá de se conquistar como? Francisca aposta numa nova atitude do sector privado ou até em quotas de tempo para serviço comunitário. “Qualquer coisa, cinco horas por mês – o teu tempo seria dedicado à comunidade. Algumas empresas têm bancos de horas que os funcionários podem usar. Em vez de estarem no trabalho à frente do computador, podem usar essas horas para fazer voluntariado. Eu acho isto muito bem. O voluntariado está um bocado na moda e às vezes há um certo excesso no alarido à sua volta. Mas é melhor pecar por excesso do que por defeito.”
Quisemos saber se a nova posição de jornalista freelancer trouxe uma nova velocidade à vida de Francisca. “Não. Aliás, o meu filho até se queixa e diz ‘a mãe dizia que ia ter imenso tempo para mim quando saísse do Público e afinal não tem nada’. Não vivo a outra velocidade, mas vivo à minha velocidade.”
A vida da mãe do João não é necessariamente mais lenta, mas tem período lentos, alternados com períodos mais acelerados. Francisca ganhou direito aos seus momentos de pousio. “Gerir o teu próprio tempo é um luxo. Olho para a minha própria agenda e digo que neste dia não posso reunir com alguém porque tenho de levar o meu filho ao Conservatório, reúno antes no dia seguinte. Conseguir fazer isto é muito bom.”
O que será que Francisca faz quando quer parar? “Eu tenho a sorte de viver num sítio absolutamente maravilhoso” Da sua casa, no Penedo, em Colares vê-se a Serra de Sintra e sente-se a brisa do Atlântico. “Sou perfeitamente capaz de me sentar no sofá e ficar sem fazer nada durante um bom bocado. Sem pegar no telemóvel, num livro, nada. Estou ali a ver a vista e penso em coisas muito terra-a-terra. ‘Aquela bétula este ano ainda está sem folhas, o que é que lhe estará a acontecer? O ulmeiro já tem folhas, a bétula mais adiante já tem folhas, porque é que ela ainda não tem folhas?’”
Nada e criada na capital, Francisca cresceu completamente urbana, longe das albardas. “Vivia em Lisboa e passava as férias na Ericeira, que também não é uma zona rural. A excepção eram os finais de Verão. A minha mãe organizava uns piqueniques com passeios de burro, perto da Ericeira e também íamos apanhar amoras silvestres para fazer compota.”
Os avós maternos tinham casa na Ericeira e Francisca ainda se lembra de se cruzar com uma artista que nunca desligou o seu imaginário da vila, a pintora Paula Rego. Entretanto houve duas revoluções na família Gorjão Henriques. “Os mais velhos cresceram de forma bastante diferente, nós somos 6 e sempre houve os 3 mais velhos e os 3 mais novos. E o que traçou a barreira foi o 25 de Abril e o facto dos meus pais se terem separado, dois anos depois.”
Por falar noutros tempos, quisemos saber o que a jornalista insiste em fazer como antigamente. Escrever à mão? “Escrever à mão, sim. Há uns tempos, estava na Fugas e fui entrevistar o Gordon Ramsay e convidaram também alguns bloggers e instagramers. Entretanto, para além da entrevista havia um workshop para aprender a fazer bife Wellington, o seu prato de assinatura. Estava eu a tirar notas com o meu caderninho e caneta e os instagramers, todos de vinte e tal anos, olham para mim e dizem ‘ah que engraçado tu escreves num papel!’ (risos) Foi dos momentos profissionais em que me senti mais cota! Para eles é tudo no telemóvel, fica logo disponível e é facilmente editável. Pelos vistos escrever à mão é uma coisa arcaica.”
Do bife Wellington passamos para as bochechas de porco que demoram quatro horas a fazer, não é o seu prato de assinatura, mas poderia ser se, num mundo paralelo, Francisca fosse a chef. Percebe-se que é um cozinheira metódica. “Há uma sopa tailandesa que eu faço muito bem, cheia de erva-príncipe e folhas de lima. Comprei uma limeira-kaffir de propósito para fazer comida tailandesa, está dentro de casa para ter um bocadinho mais de calor.”
Cozinhar para a família e amigos é uma das melhores formas de dar tempo a essas pessoas? “Sim, é um lugar comum dizer que é um gesto de amor, mas realmente é um gesto de entrega. Eu sou a quinta de seis filhos e sempre foi normal jantares com muita gente, portanto eu gosto muito de ter pessoas em casa, não sinto aquilo como uma grande missão.”
Será verdade que à mesa ninguém se faz velho? “Na mesa trata-se de tudo, para o bem e para o mal. Nós gostamos muito de falar da partilha, da conversa, dos almoços que se estendem pela tarde, mas às vezes também acontece o contrário, sentas-te à frente daquela pessoa, durante aquele período estás ali e, se calhar, esse é o momento em que vais pôr algumas coisas em pratos limpos. Ahn? Em pratos limpos! Criam-se e quebram-se amizades, fazem-se e desfazem-se relações. Obviamente que é mais agradável olharmos para a coisa de um lado mais positivo, ver a mesa como o lugar de partilha que é por excelência. Se pensarmos em lugares de comunhão com os outros não há outro tão poderoso como a mesa. Passa por qualquer coisa que ingeres. Por alguma razão a comunhão na igreja passa por entregar uma hóstia ao crente, não é? É o pão simbólico. Estes termos existem e estou a pensar nisto enquanto falo. Neste preciso momento isto faz-me sentido.”
Uma vez que trabalha com a inquietação de outras pessoas, e correndo o risco de fazer uma pergunta tipo “o que dizem os teus olhos?”, quisemos saber o que é que inquieta a Francisca. “Inquieta-me imenso a intolerância e a desigualdade. Acho incompreensível como é que pessoas que vivem no século XXI, com acesso à informação, são capazes da intolerância. Como é que isso lhes ocorre? Claro que podemos explicar, o medo, a segurança, o discurso populista que alimenta estas coisas todas, mas a partir do momento em que tu conheces aquele que achas que é o outro, percebes que é alguém que tem exactamente os mesmos problemas que tu: conciliar a vida de casa com a vida do trabalho, apanhar o mesmo transporte, querer um trabalho que o realize, que os filhos estudem na universidade, enfim, somos iguais. Isto é uma evidência, mas é assim, e por ser verdade, inquieta-me.”
E o que deixa a Francisca quieta? A resposta, no meio de uma gargalhada, foi: “a música deixa-me quieta”.
Como é que constróis o teu tempo para os outros? “Isto é tudo por egoísmo. Não é para me sentir bem no sentido moralista ‘ah, isto está mal, vamos lá fazer bem’, é para me sentir bem na medida em que eu tenho a tal inquietação e isto apazigua a minha inquietação. Não faz sentido ter filhos se não quisermos partilhar coisas com eles e viver as coisas deles, nem faz sentido trabalhar só para ti. Eu estou num projecto em que a relação com os outros é muito directa, não é? Trata-se de integração. Mas na verdade, mesmo como jornalista, uma história é sempre para partilhar com alguém. Aquilo que fazemos, fazemos quase sempre por nós, de um ponto de vista ou de outro, quer seja porque nos sentimos muito bem a fazer ou porque nos realiza de alguma forma, ou porque a nossa consciência moral e ética nos diz que é a coisa certa a fazer. Não deixa de ser um imperativo nosso.”
Ao longo do seu percurso a Francisca conheceu vários sábios da terra, que não lhe saem da memória, será que lhes poderíamos chamar de ‘agricultos’? “As pessoas dedicarem-se inteiramente a uma coisa e fazerem-na o melhor possível e saberem tudo o que há para saber sobre essa coisa específica é algo que me comove. Há muito pouca gente assim. Eu sinto que há um tipo de conhecimento ligado à terra que é muito pouco valorizado. Tu consideras culto alguém que sabe falar de cinema, de literatura, de música, de história, de geografia…, mas depois não precisa de saber distinguir uma ameixieira de uma romãzeira, porquê?”
“Conheci o Mário Neves na ilha do Pico, um homem que sabe tudo sobre a sua terra. Ele é capaz de construir um barco, de apanhar os maiores peixes, sabe exactamente as épocas certas, por que lado do canal é que os peixes passam, sabe dizer-te tudo sobre o milho que cultiva, sobre as batatas, sobre todos os animais que estão ali à volta. Mas alguém vai dizer ‘este senhor é muito culto?’ Ninguém, mas ele é um sábio.”
É raro um jornalista ter calma para fazer o seu trabalho, a degustação do tempo e a lentidão hedonística é algo que pertence mais aos escritores de romances, mas Francisca já teve direito a uma reportagem que entre o trabalho no terreno e o lavor da escrita levou quase 18 dias.
“Houve uma história em que o tempo foi uma questão fundamental, a todos os níveis. Foi uma reportagem sobre a Via Algarviana e chama-se ‘O Algarve Não é Aqui’. É um percurso que se faz a pé entre Alcoutim e Sagres e demora 14 dias. Eu só consegui fazer 12, de uma ponta à outra, menos duas etapas. Além da Via Algarviana fazia uns desvios para falar com a senhora que faz a empreita, o último senhor a fazer albardas. Fui com um guia porque me interessava ter também uma interpretação do território. Eu não sei olhar e ver ‘aqui estão orquídeas selvagens, estas só nascem em Março’. Não ir com alguém que me pudesse apontar para essas coisas seria pobre. A reportagem pode parecer prosaica para a maior parte das pessoas, mas acompanha-me até hoje.”
Vamos parar por aqui, a Francisca tem de ir para casa pensar na bétula sem folhas do seu jardim.
Francisca Gorjão Henriques é jornalista freelancer, a quinta de seis filhos, presidente da Associação Pão a Pão (que gere o restaurante de refugiados Mezze) e tem uma capacidade rara nos dias apressados em que vivemos: é capaz de se sentar no sofá de sua casa e ficar sem fazer nada durante um bom bocado, sem livros, sem telemóvel, sem distrações para além das árvores do seu jardim. Aprendeu a petrificar um bocadinho com os jardins de pedra japoneses, mas o primeiro grande travão da sua vida aconteceu-lhe aos 26 anos, na forma da primeira filha, a Laura.
Hoje, com 47 anos, vive a dois tempos, apressado, lento, lento, apressado.
A nossa conversa aconteceu sem relógios nem interrupções, na mesa partilhada do Mezze, com pão, comida, bebida, aromas, risos e ruídos à mistura. Quando finalmente nos levantámos, a sacudir palavras do peito, o restaurante estava deserto, com excepção dos preparativos para o jantar vindouro.
"Num jardim de pedra nada mexe, é a imobilidade total. Sentes muito fortemente a suspensão do tempo."
"Vivo à minha velocidade."
"É muito fácil viciares-te na velocidade, dá emoção."
"Quando a minha filha nasceu eu dizia muitas vezes que ela era a materialização do tempo. Através dela eu conseguia ver o tempo passar."
"Sou perfeitamente capaz de me sentar no sofá e ficar sem fazer nada durante um bom bocado. Sem pegar no telemóvel, num livro, nada."
"Pelos vistos escrever à mão é uma coisa arcaica."
"As pessoas dedicarem-se inteiramente a uma coisa e fazerem-na o melhor possível (...) é algo que me comove."
"Há um tipo de conhecimento ligado à terra que é muito pouco valorizado."
Em 20 anos de entrevistas, reportagens e artigos para o jornal Público, há uma história carregada de vagar que destaca, sobre a Via Algarviana que percorreu a pé durante 12 dias, na qual podemos ler: “Não se chega depressa a lugar nenhum, porque essa palavra não existe quando se percorre um caminho assim.” Caminhemos, então. “Eu gosto imenso de caminhar e ainda hoje me lembro muito daquela reportagem.” No início da sua vida profissional a jovem Francisca esteve destacada na área de política internacional, especializada no Oriente. Será que os povos orientais a ajudaram a domar a típica velocidade ocidental do dia-a-dia? “Gostava de ter aprendido muito mais. Cada vez que eu ia era para fazer 20 reportagens em 4 dias. Passei lá períodos mais longos, mas na verdade foi sempre com trabalho muito intenso, sem tempo para respirar. Mas uma das paragens, em Tóquio, levou-me a um daqueles jardins de pedra maravilhosos e de repente aí, sentes realmente uma pausa. Mais ainda do que olhar para uma árvore, em que há sempre o vento que faz abanar as folhas ou um ramo, ou para um campo onde abanam as flores, num jardim de pedra nada mexe, é a imobilidade total. Sentes muito fortemente a suspensão do tempo.”
Naqueles tempos a Francisca não estava ainda convencida da necessidade de acalmar o ritmo. “Essa hipótese só veio mais tarde. É muito fácil viciares-te na velocidade, dá emoção. Quando estamos a começar um projecto ou a aprender uma profissão, há uma certa voragem, se não há é mau sinal. Queremos viver tudo e dar ao máximo. Sentimos que temos de aproveitar os momentos de aprendizagem, depois queres produzir e mostrar que aprendeste e que agora até já fazes melhor do que há dois meses.”
A Francisca de 47 anos teria algo a fizer à Francisca de 27 se a encontrasse numa encruzilhada temporal? “Dir-lhe-ia para ter calma. Mas a minha versão mais nova provavelmente não iria ouvir, até porque as coisas têm o seu tempo, certo?”
Será que a maternidade traz uma nova noção de tempo? “É muito engraçado. Quando a minha filha nasceu eu dizia muitas vezes que ela era a materialização do tempo. Através dela eu conseguia ver o tempo passar. Porque quando tu tens 26, 28, 38 anos, és a mesma pessoa, enquanto que as crianças mudam de dia para dia, depois de semana para semana e de mês a mês. Tu vês o tempo a materializar-se, o que me impressionava imenso.”
Conhecer o outro através do jornalismo, da família e da imigração, três frentes do trabalho da Francisca. “O outro sou eu, na verdade. O Mário de Sá-Carneiro dizia “eu não sou eu nem sou o outro, sou qualquer coisa de intermédio”. Em última análise tu não fazes nada que não esteja em ti fazer. Se de repente eu me vejo envolvida num projecto de integração com refugiados do Médio Oriente é porque esse impulso está em mim.”
Francisca acredita que quem tem uma vida privilegiada, ou seja, sem a necessidade urgente de sobreviver, o mínimo que tem a fazer é ajudar os outros. E daqui partimos para a única parte ensaiada da nossa conversa (aquela que já repetiu a muitos entrevistadores) em que nos explicou como se construíram as paredes à volta de duas mãos cheias de refugiados sírios.
A ideia nasceu de uma conversa, num almoço, “entre mim e umas amigas, depois da conversa, não fazer seria quase imoral.” A designer Rita Melo e a jovem estudante de arquitectura Alaa (acolhida pela família de Francisca) foram duas das intervenientes. Quando Alaa confessou que a sua maior dose de saudades ia para o pão da Síria, primeiro estranharam não existir pão árabe em Lisboa e depois pensaram em abrir uma padaria. “Evoluímos para o restaurante porque o pão é que vai buscar as coisas todas que estão em cima da mesa e não faz sentido comer pão com queijo, como nós portugueses fazemos. E até achámos piada à ideia do restaurante. Neste caso o que acrescenta é que também arranjamos trabalho às pessoas que estão a chegar, e aproveitamos uma parte tão rica da sua identidade, que pode ser partilhada com a sua comunidade de acolhimento.”
Segundo a entrevistadora feita entrevistada, em Portugal não há inércia em demonstrar solidariedade, mas “às vezes as pessoas não sabem muito bem como ajudar. Porque é difícil. O sistema não está montado para que as pessoas tenham tempo para se envolverem em projectos cívicos, políticos, associativos.” Esse tempo terá de se conquistar como? Francisca aposta numa nova atitude do sector privado ou até em quotas de tempo para serviço comunitário. “Qualquer coisa, cinco horas por mês – o teu tempo seria dedicado à comunidade. Algumas empresas têm bancos de horas que os funcionários podem usar. Em vez de estarem no trabalho à frente do computador, podem usar essas horas para fazer voluntariado. Eu acho isto muito bem. O voluntariado está um bocado na moda e às vezes há um certo excesso no alarido à sua volta. Mas é melhor pecar por excesso do que por defeito.”
Quisemos saber se a nova posição de jornalista freelancer trouxe uma nova velocidade à vida de Francisca. “Não. Aliás, o meu filho até se queixa e diz ‘a mãe dizia que ia ter imenso tempo para mim quando saísse do Público e afinal não tem nada’. Não vivo a outra velocidade, mas vivo à minha velocidade.”
A vida da mãe do João não é necessariamente mais lenta, mas tem período lentos, alternados com períodos mais acelerados. Francisca ganhou direito aos seus momentos de pousio. “Gerir o teu próprio tempo é um luxo. Olho para a minha própria agenda e digo que neste dia não posso reunir com alguém porque tenho de levar o meu filho ao Conservatório, reúno antes no dia seguinte. Conseguir fazer isto é muito bom.”
O que será que Francisca faz quando quer parar? “Eu tenho a sorte de viver num sítio absolutamente maravilhoso” Da sua casa, no Penedo, em Colares vê-se a Serra de Sintra e sente-se a brisa do Atlântico. “Sou perfeitamente capaz de me sentar no sofá e ficar sem fazer nada durante um bom bocado. Sem pegar no telemóvel, num livro, nada. Estou ali a ver a vista e penso em coisas muito terra-a-terra. ‘Aquela bétula este ano ainda está sem folhas, o que é que lhe estará a acontecer? O ulmeiro já tem folhas, a bétula mais adiante já tem folhas, porque é que ela ainda não tem folhas?’”
Nada e criada na capital, Francisca cresceu completamente urbana, longe das albardas. “Vivia em Lisboa e passava as férias na Ericeira, que também não é uma zona rural. A excepção eram os finais de Verão. A minha mãe organizava uns piqueniques com passeios de burro, perto da Ericeira e também íamos apanhar amoras silvestres para fazer compota.”
Os avós maternos tinham casa na Ericeira e Francisca ainda se lembra de se cruzar com uma artista que nunca desligou o seu imaginário da vila, a pintora Paula Rego. Entretanto houve duas revoluções na família Gorjão Henriques. “Os mais velhos cresceram de forma bastante diferente, nós somos 6 e sempre houve os 3 mais velhos e os 3 mais novos. E o que traçou a barreira foi o 25 de Abril e o facto dos meus pais se terem separado, dois anos depois.”
Por falar noutros tempos, quisemos saber o que a jornalista insiste em fazer como antigamente. Escrever à mão? “Escrever à mão, sim. Há uns tempos, estava na Fugas e fui entrevistar o Gordon Ramsay e convidaram também alguns bloggers e instagramers. Entretanto, para além da entrevista havia um workshop para aprender a fazer bife Wellington, o seu prato de assinatura. Estava eu a tirar notas com o meu caderninho e caneta e os instagramers, todos de vinte e tal anos, olham para mim e dizem ‘ah que engraçado tu escreves num papel!’ (risos) Foi dos momentos profissionais em que me senti mais cota! Para eles é tudo no telemóvel, fica logo disponível e é facilmente editável. Pelos vistos escrever à mão é uma coisa arcaica.”
Do bife Wellington passamos para as bochechas de porco que demoram quatro horas a fazer, não é o seu prato de assinatura, mas poderia ser se, num mundo paralelo, Francisca fosse a chef. Percebe-se que é um cozinheira metódica. “Há uma sopa tailandesa que eu faço muito bem, cheia de erva-príncipe e folhas de lima. Comprei uma limeira-kaffir de propósito para fazer comida tailandesa, está dentro de casa para ter um bocadinho mais de calor.”
Cozinhar para a família e amigos é uma das melhores formas de dar tempo a essas pessoas? “Sim, é um lugar comum dizer que é um gesto de amor, mas realmente é um gesto de entrega. Eu sou a quinta de seis filhos e sempre foi normal jantares com muita gente, portanto eu gosto muito de ter pessoas em casa, não sinto aquilo como uma grande missão.”
Será verdade que à mesa ninguém se faz velho? “Na mesa trata-se de tudo, para o bem e para o mal. Nós gostamos muito de falar da partilha, da conversa, dos almoços que se estendem pela tarde, mas às vezes também acontece o contrário, sentas-te à frente daquela pessoa, durante aquele período estás ali e, se calhar, esse é o momento em que vais pôr algumas coisas em pratos limpos. Ahn? Em pratos limpos! Criam-se e quebram-se amizades, fazem-se e desfazem-se relações. Obviamente que é mais agradável olharmos para a coisa de um lado mais positivo, ver a mesa como o lugar de partilha que é por excelência. Se pensarmos em lugares de comunhão com os outros não há outro tão poderoso como a mesa. Passa por qualquer coisa que ingeres. Por alguma razão a comunhão na igreja passa por entregar uma hóstia ao crente, não é? É o pão simbólico. Estes termos existem e estou a pensar nisto enquanto falo. Neste preciso momento isto faz-me sentido.”
Uma vez que trabalha com a inquietação de outras pessoas, e correndo o risco de fazer uma pergunta tipo “o que dizem os teus olhos?”, quisemos saber o que é que inquieta a Francisca. “Inquieta-me imenso a intolerância e a desigualdade. Acho incompreensível como é que pessoas que vivem no século XXI, com acesso à informação, são capazes da intolerância. Como é que isso lhes ocorre? Claro que podemos explicar, o medo, a segurança, o discurso populista que alimenta estas coisas todas, mas a partir do momento em que tu conheces aquele que achas que é o outro, percebes que é alguém que tem exactamente os mesmos problemas que tu: conciliar a vida de casa com a vida do trabalho, apanhar o mesmo transporte, querer um trabalho que o realize, que os filhos estudem na universidade, enfim, somos iguais. Isto é uma evidência, mas é assim, e por ser verdade, inquieta-me.”
E o que deixa a Francisca quieta? A resposta, no meio de uma gargalhada, foi: “a música deixa-me quieta”.
Como é que constróis o teu tempo para os outros? “Isto é tudo por egoísmo. Não é para me sentir bem no sentido moralista ‘ah, isto está mal, vamos lá fazer bem’, é para me sentir bem na medida em que eu tenho a tal inquietação e isto apazigua a minha inquietação. Não faz sentido ter filhos se não quisermos partilhar coisas com eles e viver as coisas deles, nem faz sentido trabalhar só para ti. Eu estou num projecto em que a relação com os outros é muito directa, não é? Trata-se de integração. Mas na verdade, mesmo como jornalista, uma história é sempre para partilhar com alguém. Aquilo que fazemos, fazemos quase sempre por nós, de um ponto de vista ou de outro, quer seja porque nos sentimos muito bem a fazer ou porque nos realiza de alguma forma, ou porque a nossa consciência moral e ética nos diz que é a coisa certa a fazer. Não deixa de ser um imperativo nosso.”
Ao longo do seu percurso a Francisca conheceu vários sábios da terra, que não lhe saem da memória, será que lhes poderíamos chamar de ‘agricultos’? “As pessoas dedicarem-se inteiramente a uma coisa e fazerem-na o melhor possível e saberem tudo o que há para saber sobre essa coisa específica é algo que me comove. Há muito pouca gente assim. Eu sinto que há um tipo de conhecimento ligado à terra que é muito pouco valorizado. Tu consideras culto alguém que sabe falar de cinema, de literatura, de música, de história, de geografia…, mas depois não precisa de saber distinguir uma ameixieira de uma romãzeira, porquê?”
“Conheci o Mário Neves na ilha do Pico, um homem que sabe tudo sobre a sua terra. Ele é capaz de construir um barco, de apanhar os maiores peixes, sabe exactamente as épocas certas, por que lado do canal é que os peixes passam, sabe dizer-te tudo sobre o milho que cultiva, sobre as batatas, sobre todos os animais que estão ali à volta. Mas alguém vai dizer ‘este senhor é muito culto?’ Ninguém, mas ele é um sábio.”
É raro um jornalista ter calma para fazer o seu trabalho, a degustação do tempo e a lentidão hedonística é algo que pertence mais aos escritores de romances, mas Francisca já teve direito a uma reportagem que entre o trabalho no terreno e o lavor da escrita levou quase 18 dias.
“Houve uma história em que o tempo foi uma questão fundamental, a todos os níveis. Foi uma reportagem sobre a Via Algarviana e chama-se ‘O Algarve Não é Aqui’. É um percurso que se faz a pé entre Alcoutim e Sagres e demora 14 dias. Eu só consegui fazer 12, de uma ponta à outra, menos duas etapas. Além da Via Algarviana fazia uns desvios para falar com a senhora que faz a empreita, o último senhor a fazer albardas. Fui com um guia porque me interessava ter também uma interpretação do território. Eu não sei olhar e ver ‘aqui estão orquídeas selvagens, estas só nascem em Março’. Não ir com alguém que me pudesse apontar para essas coisas seria pobre. A reportagem pode parecer prosaica para a maior parte das pessoas, mas acompanha-me até hoje.”
Vamos parar por aqui, a Francisca tem de ir para casa pensar na bétula sem folhas do seu jardim.
Francisca Gorjão Henriques
O mistério da bétula sem folhas
Entrevista realizada dia 8 de Maio de 2019 durante um almoço na mesa comunitária do restaurante Mezze, mercado de Arroios, em Lisboa.
Francisca Gorjão Henriques é jornalista freelancer, a quinta de seis filhos, presidente da Associação Pão a Pão (que gere o restaurante de refugiados Mezze) e tem uma capacidade rara nos dias apressados em que vivemos: é capaz de se sentar no sofá de sua casa e ficar sem fazer nada durante um bom bocado, sem livros, sem telemóvel, sem distrações para além das árvores do seu jardim. Aprendeu a petrificar um bocadinho com os jardins de pedra japoneses, mas o primeiro grande travão da sua vida aconteceu-lhe aos 26 anos, na forma da primeira filha, a Laura.
Hoje, com 47 anos, vive a dois tempos, apressado, lento, lento, apressado.
A nossa conversa aconteceu sem relógios nem interrupções, na mesa partilhada do Mezze, com pão, comida, bebida, aromas, risos e ruídos à mistura. Quando finalmente nos levantámos, a sacudir palavras do peito, o restaurante estava deserto, com excepção dos preparativos para o jantar vindouro.
"Num jardim de pedra nada mexe, é a imobilidade total. Sentes muito fortemente a suspensão do tempo."
"Vivo à minha velocidade."
"É muito fácil viciares-te na velocidade, dá emoção."
"Quando a minha filha nasceu eu dizia muitas vezes que ela era a materialização do tempo. Através dela eu conseguia ver o tempo passar."
"Sou perfeitamente capaz de me sentar no sofá e ficar sem fazer nada durante um bom bocado. Sem pegar no telemóvel, num livro, nada."
"Pelos vistos escrever à mão é uma coisa arcaica."
"As pessoas dedicarem-se inteiramente a uma coisa e fazerem-na o melhor possível (...) é algo que me comove."
"Há um tipo de conhecimento ligado à terra que é muito pouco valorizado."
Em 20 anos de entrevistas, reportagens e artigos para o jornal Público, há uma história carregada de vagar que destaca, sobre a Via Algarviana que percorreu a pé durante 12 dias, na qual podemos ler: “Não se chega depressa a lugar nenhum, porque essa palavra não existe quando se percorre um caminho assim.” Caminhemos, então. “Eu gosto imenso de caminhar e ainda hoje me lembro muito daquela reportagem.” No início da sua vida profissional a jovem Francisca esteve destacada na área de política internacional, especializada no Oriente. Será que os povos orientais a ajudaram a domar a típica velocidade ocidental do dia-a-dia?
“Gostava de ter aprendido muito mais. Cada vez que eu ia era para fazer 20 reportagens em 4 dias. Passei lá períodos mais longos, mas na verdade foi sempre com trabalho muito intenso, sem tempo para respirar. Mas uma das paragens, em Tóquio, levou-me a um daqueles jardins de pedra maravilhosos e de repente aí, sentes realmente uma pausa. Mais ainda do que olhar para uma árvore, em que há sempre o vento que faz abanar as folhas ou um ramo, ou para um campo onde abanam as flores, num jardim de pedra nada mexe, é a imobilidade total. Sentes muito fortemente a suspensão do tempo.”