Ana Brazão
Entrevista realizada dia 17 de Maio de 2019 durante um café no espaço Corações Com Coroa Café, em Lisboa.
A guardadora de rios
O rio que corre pela sua aldeia é o Tejo. Ana Brazão é uma lisboeta acidental, não porque nasceu na capital portuguesa de passagem, mas porque a vida citadina de Lisboa oferece-lhe pouco daquilo que gosta de fazer nos tempos livres: rafting e diálogos silenciosos. Foi precisamente a descida de uns rápidos que ajudou Ana a largar um futuro em laboratórios de química e a deixar-se levar pelo bichinho do ativismo ambientalista.
Antes de um fim-de-semana de rafting, trekking e canoagem, organizado pela GEOTA (GEOTA – Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente), não fazia ideia que os rios estavam em perigo, mas na segunda-feira seguinte o mundo tinha uma cidadã mais consciente, que viria a criar o projecto Rios Livres, em defesa de rios livres e limpos. Há quem lhe chame maluquinha da cabeça por lutar contra barragens desnecessárias e expropriações sem ai nem ui, para nós é uma guardadora de rios, esses cursos de água doce que se querem fluentes, como uma boa conversa.
"Por acaso sou uma ativista muito quieta, o que passa por saber dar prioridade às coisas."
"O que poderia ser feito mais devagar? Estarmos com os outros. Estar contigo próprio. Estar. Mais devagar."
"Não sou deste tempo porque não me sinto com a idade que tenho. Sou um bocadinho uma old soul."
"Gosto da sabedoria que traz a idade."
"Adoro cozinhar, é o meu momento zen. Ponho música e fico ali duas, três horas. Gosto de apurar e de inventar."
"Não é justo, estão a tirar tempo às pessoas."
"Com a minha avó aprendi a gostar de estar sozinha, a gostar de passar tempo com os outros em silêncio."
"Consigo estar com a minha avó uma tarde em silêncio a fazermos alguma coisa juntas."
"Existe um nível de sintonia com o ecossistema que já passou para o nível da poesia. Esse espírito é muito bonito."
Numa tarde quente de Maio, entre cafés e copos de água, quisemos, sem demoras, perceber o que é afinal um rio livre. A resposta veio em duas parte, a primeira técnica, a segunda emocional. “Tecnicamente um rio livre é aquele que não tem alteração à sua morfologia, ou seja, o leito e as margens não foram alterados, não houve uma regularização artificial do rio, o que hoje em dia é muito raro. Algumas alterações são naturais, os rios são dinâmicos e podem mudar o seu curso, a questão é quando somos nós a alterá-los: dizimamos por completo o ecossistema porque não está em sintonia com as dinâmicas da areia, da fauna e da flora. Mudar por completo a fisionomia de um rio é bloqueá-lo. Saiu um estudo a semana passada que diz que só 1/3 dos principais rios do mundo é que continua livre. É a alteração por completo das leis do planeta, tudo em prol de captar e edificar mais.”
E quanto ao lado emocional? “Não sei se alguma vez fizeste rafting ou canoagem. Há outra sensação ali. O facto de tu seres só mais um no meio do que está à tua volta versus estares num lago de água estagnada, podre, quase sem vida. Não é a mesma experiência. É um dos poucos sítios que ainda é verdadeiro.” Então será que uma barragem é sempre uma má ideia? “Atenção, as barragens são necessárias para muita coisa e nós vamos continuar a precisar delas durante muito tempo. O que nós defendemos é que não são precisas tantas. Num país como Portugal estamos a falar de 8.000 barreiras nos nossos rios, entre açudes, barragens grandes, barragens pequenas e mini hídricas. São mais do que suficientes. Os rios são as veias da Terra e os principais ciclos naturais (da água, do azoto, da recuperação dos solos), são também eles que transportam os sedimentos que impedem a erosão costeira. Bloquear um rio é como bloquear uma veia. O sistema até pode continuar a viver, mas vamos ter um grave problema de saúde.”
O trabalho do projecto Rios Livres e do GEOTA é salvar estas veias, contra os enfartes do planeta. O primeiro passo para que Ana se tornasse numa ‘cardiologista ambiental’ aconteceu nos cenários idílicos dos rios Sabor e Tua. “Quando tu passas 3 ou 4 dias em sítios que daqui a uns meses vão desparecer do mapa isso marca-te. Era de uma tal beleza, uma plenitude de paisagens absolutamente inigualáveis. Acabei por me juntar como voluntária e entretanto passaram 8 anos.”
Pelo meio Ana criou o Projeto Rios Livres “em conjunto com outros voluntários, éramos amigos e começámos a fazer guerrilha, campanha, manifestações, ativismo…” Após a licenciatura em química fez mestrado em ambiente e trabalhou alguns anos em investigação química e química ambiental “até que percebi que a investigação que eu estava a fazer não servia para nada e até agravava os problemas. És sempre financiado por alguém. Quando estás a trabalhar para farmacêutica é menos mau, mas se estás a trabalhar para agroquímica, para a indústria…”
Segundo Ana, mesmo os estudos feitos nos laboratórios das universidades podem estar sujeitos a serem implementados em indústrias poluentes. “O desenho da nossa economia não faz sentido nenhum e portanto decidi mudar.”
O bichinho do ativismo surgiu e a solução para mudar a economia selvagem resume-se numa palavra: “Decrescimento.”
Será que o capitalismo deveria ter os dias contados? “A começar pelo facto de medirmos o nosso desenvolvimento pelo PIB, que pressupõe sempre a extração de um recurso e o lucro associado. Se tu tiveres uma grande catástrofe, um grande tsunami por exemplo, e nós precisarmos de um investimento brutal para conseguir recuperar o que foi destruído, o PIB vai aumentar. Podem ter morrido milhares de pessoas, pode ter ficado tudo destruído, mas é o que acontece. Não faz sentido continuar a medir-nos, a nós enquanto sociedade, com um indicador que implique explorar mais. E estamos a deixar de ter recursos para explorar no mundo.”
Deveríamos adoptar o FIB (Felicidade Interna Bruta)? “Sim, o Butão mede o índice de felicidade. Sá aceitam 6 mil pessoas por ano. 6 mil vistos. Gostava imenso de ir.”
Mudarmos todos para o Butão é impossível, qual será a solução para a humanidade? Parar um bocadinho para prestar atenção aos desequilíbrios que espreitam em cada canto? “Se calhar voltarmos a perceber o que é que tem valor. O consumidor pensa: o que é que eu visto? o que é que eu como? onde é que eu ando? Mas falta o ‘eu enquanto cidadão”.
Ana salienta que enquanto consumidora há muitas questões a ter em conta, usar ou não usar palhinha biodegradável, escolher ou não escolher plásticos recicláveis, comer ou não comer carne, mas acredita que está longe de ser suficiente. “Mesmo que eu tenha o mais ecológico dos tipos de vida, sozinha não vou conseguir mudar a larga maioria dos processos de destruição ambiental que existem no mundo. Só quando pensarmos menos no ‘eu’ e no consumo é que nós vamos mudar.”
Passa por caminhar para uma economia de partilha, o que implica consumir menos e não apenas um consumo mais sustentável. Essa mudança pode levar várias gerações a acontecer? “Existe um certo outsourcing de consciência, ‘isso já não somos nós que vamos mudar’. São sempre as próximas gerações, mas não, é agora. É agora que fazemos essa alteração.”
Fazer o ponto de embraiagem em ruas íngremes e as injustiças com expropriações são duas situações que deixam Ana inquieta. “Há um lado que me levou a trabalhar com rios que tinha a ver com a engenharia do ambiente, mas depois há o lado humano que te leva a continuar a lutar. É tão discrepante a pessoa que toma a decisão e quem sofre com ela, que tem zero a dizer na decisão. Andam a expropriar aos bocadinhos e nunca expropriam na totalidade para não pagarem a propriedade no total e fazem-te a vida negra. Vencerem as pessoas pelo cansaço, não sei se é a coisa que me deixa mais inquieta, mas é a que me faz dizer mais palavrões.”
E o que será que deixa uma ativista quieta? “Por acaso sou uma ativista muito quieta, o que passa por saber dar prioridade às coisas. Há muitos ambientalistas que entram num processo tal de stress e angústia que não conseguem parar de falar do assunto e até entram num processo de burn out. Eu, de alguma forma, consigo desligar e fazer as coisas que gosto. Continuo a fazer os passeios que sempre fiz, a apanhar banhos de sol, a ler um livro por mês, a beber um chá ou um copo de vinho… ou seja a estabilidade emocional tem de ser mantida.”
Ou seja, consegue separar as águas. “É cansativo teres de lidar com problemas, quando te dizem que houve mais uma descarga no Tejo e são 9 da manhã de um domingo… é mais incerto conseguires conciliar a vida profissional com a vida pessoal. Se não levares a coisa com calma é mais difícil.”
“O que poderia ser feito mais devagar? Estarmos com os outros. Estar contigo próprio. Estar. Mais devagar. Prende-se com o que dás valor ou não, no final do dia, e como eu acho que andamos sempre a dar valor às coisas erradas.”
Entre dois copos de água fresca, perguntámos o que será mais urgente corrigir neste no mundo e Ana responde sem pinga de hesitação: A corrupção. Falta de transparência. Falta de envolvimento. Lá está, se cada um de nós não está envolvido nas tomadas de decisões faz com que fique muito centrado em si e nas coisas que consegues fazer para melhorar o teu bem-estar ou dos poucos que estão à sua volta.”
A conversa vai parar ao tema muito lusitano do discurso derrotista de descrença, dos braços cruzados e da bolha metafórica que a publicidade de um iogurte probiótico deu ao mundo. “Há uma constante indignação por parte das pessoas, mas muito pouca ação. Se sentires que és livre de pensar ‘eu gostava que o mundo fosse mais isto ou mais aquilo’, se pensares que ao fazeres a, b, c e d, e chegar lá, apenas com os entraves normais das democracias, com sistemas que congregam as opiniões de várias pessoas, tu sentes-te muito mais ‘empoderado’ em mudar as coisas à tua volta. Agora, se tens sistemas que são obscuros, corrompidos por dentro, se os processos são morosos, se sentes que te falta poder enquanto cidadão, tens tendência a blindar-te em mudar as coisas à tua volta e vão todos ser assim, todos na bolha L Casei Imunitass, centrados neles próprios (com todo o respeito por quem faz introspeção).”
Os problemas ambientais e nos rios “estão sempre relacionados com alguma falha no processo, com algum procedimento absolutamente corrompido, há sempre alguma coisa que cheira mal.”
Ana nunca confrontou cara a cara uma pessoa corrupta, mas corrompida sim. “É óbvio que a resposta não é boa. És recebido com 7 pedras na mão e fazem-te a pior coisa possível: não têm uma discussão sobre o acto que estás a discutir. Começam por te colocar o chavão de “maluquinha da cabeça”, ambientalista fundamentalista, extremista. Já tive até um comentário de terrorista.”
Como é que se explica a alguém assim, com toda a calma do mundo, a importância do trabalho de um ativista? Ana segue a regra de Mark Twain, “nunca discutas com um idiota. Ele arrasta-te até ao nível dele, e depois vence-te em experiência”. “Quando alguém te chama terrorista ou extremista é uma conversa a não ter. Nos outros casos só chego ao ativista no final da explicação. Digo primeiro que trabalho em conservação da natureza e aí as pessoas percebem que é importante. E o que é que isso implicar? Implica ser ativista.”
Para algumas pessoas a imagem de um ativista significa estar aos gritos em frente à Assembleia da República, curiosamente a sede do projecto Rios Livres fica a poucas ruas do Parlamento. “Aos gritos é tão raro. Mas quando esgotas a capacidade de reunir com decisores, desde presidentes de câmara, a candidatos a presidentes de câmara, ministros, secretários de estado, deputados, quando já não tens uma plataforma de diálogo e não consegues trazer o assunto para a discussão publica, então fazes manifestações públicas.”
O trabalho de ativistas como a Ana é deixar vírus positivos nas cabeças dos políticos. “Antes das eleições costuma haver um copy paste de algumas ideias nossas nos programas deles, o que é perfeito, é o que nós queremos: influenciar. Copiem tudo, por favor.”
Perante a pergunta se Ana se sentia ‘deste tempo’, deu-nos a resposta mais imediata de todas. “Não.” Será que se gostaria de viver no século XIV? “Nessa altura teria poucos direitos enquanto mulher. Quando digo que não sou deste tempo, é porque não me sinto com a idade que tenho. Sou um bocadinho uma old soul nas coisas que valorizo como pessoa. Sinto-me mais antiga e sempre gostei de estar na companhia de pessoas mais velhas, de aprender com pessoas mais velhas, de programas que tendencialmente são para pessoas mais velhas. Tem mais a ver com o estilo de vida. Gosto da sabedoria que traz a idade. Conhecimento é uma coisa que tens ou não tens, mas quando estás com pessoas que já passaram por outras coisas, têm outra forma de ver os problemas.”
Idades à parte, será que cada um de nós tem um conflito entre o seu consumidor e cidadão interiores? “Tenho muitos dilemas a pensar como as pessoas poderiam voltar a valorizar algo que não conhecem, sobretudo na faixa etária dos meus pais, sobre a agricultura antes dos pesticidas. Não sei se esse conhecimento se perdeu, se existe uma visão clara para algumas gerações sobre o tempo e qualidade versus a quantidade. Nas últimas décadas vendeu-se este mito de ser necessário um certo tipo de agricultura para alimentar o mundo.”
E como voltamos a uma época sem pesticidas? “Os solos têm um ritmo, a utilização do recurso hídrico tem um ciclo. O facto de estarmos a desgastar um solo e a torna-lo cada vez menos fértil ao adicionar químicos, leva a perder qualidade no longo prazo. Portanto é preciso ter um produto que tendencialmente demora mais tempo a ser produzido, que o rendimento por hectare vai ser mais reduzido também, mas eu vou ter muito melhor qualidade e muito mais respeito pelas gerações vindouras, ao preservar os recursos que eu não consigo replicar. Eu não consigo fazer solo nem consigo fazer água.”
Então como se alimenta, 7 mil milhões de bocas? “Há que recordar que 1/3 da alimentação mundial é desperdiçada pelo caminho. Se calhar o problema não é alimentar quase 8 mil milhões, é saber onde é que os alimentos são distribuídos. Acontece o mesmo com as barragens, a larga maioria são para a agricultura, mas depois vais ver os campos e não têm nenhuma forma de retenção natural para a água no local onde ela cai. Vês campos completamente terraplanados com morfologia adaptada para conseguir extrair o máximo por hectare e não tens forma de assegurar diversidade de espécies plantadas, ou seja, quando há um praga vai tudo a eito, porque é só uma cultura. Se tivesses pequenas bacias de retenção seria preciso regar muito menos. Com a rotação e alteração de culturas, cada uma daquelas plantas poderia retirar nutrientes diferentes do solo e depositar outros, necessários para as culturas seguintes.”
E eis que a conversa chegou ao sabor de um tomate verdadeiro, sem químicos, sem rasteiras e sem pressas, Ana congratulou-se. “É bom que haja esses exemplos porque há 10 anos atrás, falar de agricultura biológica era falar de gourmet. E hoje em dia vais a um supermercado normal e já tens múltiplas opções de azeite, vinho, quase tudo, em modo biológico. A mensagem que passa é muito positiva: há empresas que conseguem fazer a sua vida normal, nem sequer vou discutir as taxas de lucro, ou seja enquadram-se no mercado mas também respeitam os ritmos da natureza.”
Infelizmente a maioria das empresas ainda vive na lógica de aumentar os lucros todos os anos, enquanto esse paradigma não mudar… “Se calhar tem de haver um limite ao lucro, mas isso é outro debate. Que eu saiba só existem os tetos salariais (em países como a Dinamarca) e os rácios entre a pessoa que mais ganha e a que menos ganha numa empresa. Com uma margem de lucro máxima, a distribuição da riqueza seria mais justa.”
O trabalho de ativista passa muito por pressionar a classe política, e acredita que essa a mudança começa mais nas pequenas comunidades do nas mudanças macro ao nível do Estado ou da União Europeia. “Eu acredito no bottom-up, cada vez mais pessoas a fazer pressão e a demonstrar que alguma coisa acima tem de mudar. A questão dos direitos dos animais foi um movimento que surgiu debaixo e subiu até às camadas superiores. Hoje os animais são muito mais defendidos.”
O que será nos dias de hoje, com toda a informação disponível, um consumidor consciente? Aqueles que comem carne e usam sacos de plástico deveriam sentir-se um bocadinho culpados? “Eu sou flexitariana, maioritariamente vegetariana, mas faço as excepções que me apetece, desde que não seja uma espécie em perigo como o atum ou a sardinha.” Ana tenta ser uma consumidora consciente e não alinha com o epíteto de ‘fundamentalista’ que chamam às pessoas que cortam radicalmente com carne e afins. “Quem toma decisões de forma mais regrada do que eu, não é necessariamente fundamentalista, é alguém com preocupação pelo bem-estar geral. Ver essas pessoas como mais ou menos extremistas não faz sentido. Estão a tomar uma decisão que merece ser respeitada.”
Quando uma pessoa come carne todos os dias, provavelmente não vai sofrer as consequências disso, mas a próxima geração vai de certeza. Por outro lado Ana nunca esquece que a informação ambientalista não chega a toda a gente, seja a quem vive em Freixo-de-Espada-à-Cinta ou a quem recebe 600 euros por mês, passa horas entre o trabalho, a escola e a casa, sem tempo para demolhar o bacalhau. “O consumo rápido passou a simbolizar a melhoria da qualidade de vida e acabou o grão a granel. E claro que é prático, abrir uma lata de grão já cozido e fazer a comida, poupa-te tempo. Mas essa poupança de tempo, no somatório de todas as pessoas, leva ao desgaste por completo dos nossos recursos.”
Por outro lado, o tempo que se poupa a cozinhar nem sempre vai para o melhor destino. “Esse consumo mais rápido do grão em lata, esse pedires um glovo, veio-te apenas garantir que tens mais tempo para estares a trabalhar.”
Vivemos tempos apressados de comida rápida e refeições à pressa, mas é importante aprender a apurar mais. A cozinha tem algo para nos ensinar: tudo tem um tempo. Não se pode falsificar o tempo de crescimento da massa de um bolo. “Eu adoro cozinhar, é o meu momento zen. Ponho música e fico ali duas, três horas. Gosto de apurar e de inventar.”
Entre os 10 milhões de portugueses são muito poucos aqueles com o luxo do tempo para si e para a família. “Eu inventei o lado bom dos transportes públicos: poupo num carro, é uma solução ambiental e leio um livro por mês. As pessoas trabalham demais e perdem qualidade de vida. Quase que é inevitável teres um carro, fazeres da cozinha uma coisa pré-confecionada que encomendas… É triste que se tenha exigido às pessoas esse estilo de vida.”
Às tantas a ativista pensa em voz alta: “se calhar outra regra que se deveria criar é ter um limite de horas de trabalho”, ou seja, leis laborais impossíveis de falsificar com o truque das horas extraordinárias, aquelas que legalmente parecem não ter limites. “Não é justo, estão a tirar tempo às pessoas.”
Uma das missões mais especiais em que Ana se envolveu, foi em nome da proteção de um dos rios mais belos de Portugal (ideal para a prática de desportos de águas bravas). A Plataforma Salvar o Tua alertava para o disparate monumental da construção da Barragem de Foz Tua, que ia submergir centenas de hectares agrícolas, inseridos na região do Douro Vinhateiro (património mundial da Unesco). A obra da EDP tinha a ambiciosa meta de produzir 0,1% da energia do país. “Eu conheci o Esporão durante a campanha do ultimo ano do Tua. Eles fizeram quatro mini-documentários realizados pelo Jorge Pelicano que serviram para divulgar o site da plataforma. Quando lançamos o site a barragem estava muito perto de ser concluída, mas não me lembro de uma campanha ambiental que tenha tido um resultado como aquela. 22 mil cartas e emails enviados à UNESCO! É muito milhar de gente. Não foi a tempo, mas fez uma coisa. Nestes processos de transformação, conseguimos mudar a percepção de que barragens são sempre positivas. ‘Tudo o que é renovável é bom’, isto é um mito.”
Num dos documentários podemos ouvir Pedro Duarte, agricultor afectado pelo barragem, dizer ‘nem todo o dinheiro do mundo paga as árvores que eu e os jovens desta terra plantámos e que já desapareceram”.
As lutas dos ativistas e dos agricultores à beira de verem o futuro ser afogado por águas e negócios mal cheirosos, vencem-se com persistência. “Isto nunca é uma campanha, nunca é uma votação, nunca é uma ação, nunca é aquele vídeo… é tudo. E no final, vemos a diferença. Há esforços e conquistas bonitas que conseguimos enquanto seres humanos. A igualdade de género, por exemplo. O papel que a mulher tem hoje comparado com há 30, 40 anos. A luta dos direitos LGBTI. O facto de ter passado uma lei há pouco tempo que irá proibir fruta e vegetais embalados em plástico. Há coisas que enquanto humanidade estamos a tentar fazer e até vão dando resultado. O problema é tudo o resto que ainda falta fazer.”
O que será que uma mulher com uma old soul tem aprendido com pessoas mais velhas? “Tenho uma paixão e fascínio pela ferrovia, pelo funcionamento dos comboios. É algo que veio do meu avô, que aprendi com ele. Com a minha avó aprendi a gostar de estar sozinha, a gostar de passar tempo com os outros em silêncio.”
É nas antípodas de uma selfie com um fotogénico capuccino, num impecavelmente decorado café com um filtro de Instagram e um obsceno número de likes, que surge a confidência de Ana: “Não é preciso estar a fazer coisas e estar a mostrar que se está a fazer coisas. É só o estar. Consigo estar com a minha avó uma tarde em silêncio a fazermos alguma coisa juntas. É aí nesse estar e partilhar de momento que se partilham certas ideias de outros tempos. E aí sinto que a conheço.”
Para Ana a inspiração a montante não é exclusivamente familiar e lembra-lhe uma história junto às margens do rio Tâmega. “Era um produtor de vinho, na zona de Gatão (Amarante), com quem passámos uma tarde e noite inteiras em frente a uma lareira, a beber o seu vinho porque ele não queria falar connosco até passarmos um teste. Recitou poemas de Camões de cor até que começou a explicar a importância que o rio tinha na sua vinha. A descrição que ele fez da água ali ao lado permitir que a vinha respirasse, foi magnífica, dizia que a respiração via-se nas madrugadas. Se o rio fosse retido mais acima a possibilidade de sentir a terra a respirar iria desaparecer. Nunca conseguirei replicar as palavras dele, mas aquele conhecimento é algo que só encontras muito de vez em quando.”
O senhor camoniano da história era alguém que claramente percebia a dinâmica da vida: o uso do solo, do clima e da água, em sintonia com as espécies que plantava, até ao produto final, naquele caso, o vinho. “Existe um nível de sintonia com o ecossistema que já passou para o nível da poesia. Esse espírito é muito bonito.”
O rio que corre pela sua aldeia é o Tejo. Ana Brazão é uma lisboeta acidental, não porque nasceu na capital portuguesa de passagem, mas porque a vida citadina de Lisboa oferece-lhe pouco daquilo que gosta de fazer nos tempos livres: rafting e diálogos silenciosos. Foi precisamente a descida de uns rápidos que ajudou Ana a largar um futuro em laboratórios de química e a deixar-se levar pelo bichinho do ativismo ambientalista.
Antes de um fim-de-semana de rafting, trekking e canoagem, organizado pela GEOTA (GEOTA – Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente), não fazia ideia que os rios estavam em perigo, mas na segunda-feira seguinte o mundo tinha uma cidadã mais consciente, que viria a criar o projecto Rios Livres, em defesa de rios livres e limpos. Há quem lhe chame maluquinha da cabeça por lutar contra barragens desnecessárias e expropriações sem ai nem ui, para nós é uma guardadora de rios, esses cursos de água doce que se querem fluentes, como uma boa conversa.
"Por acaso sou uma ativista muito quieta, o que passa por saber dar prioridade às coisas."
"O que poderia ser feito mais devagar? Estarmos com os outros. Estar contigo próprio. Estar. Mais devagar."
"Não sou deste tempo porque não me sinto com a idade que tenho. Sou um bocadinho uma old soul."
"Gosto da sabedoria que traz a idade."
"Adoro cozinhar, é o meu momento zen. Ponho música e fico ali duas, três horas. Gosto de apurar e de inventar."
"Não é justo, estão a tirar tempo às pessoas."
"Com a minha avó aprendi a gostar de estar sozinha, a gostar de passar tempo com os outros em silêncio."
"Consigo estar com a minha avó uma tarde em silêncio a fazermos alguma coisa juntas."
"Existe um nível de sintonia com o ecossistema que já passou para o nível da poesia. Esse espírito é muito bonito."
Numa tarde quente de Maio, entre cafés e copos de água, quisemos, sem demoras, perceber o que é afinal um rio livre. A resposta veio em duas parte, a primeira técnica, a segunda emocional. “Tecnicamente um rio livre é aquele que não tem alteração à sua morfologia, ou seja, o leito e as margens não foram alterados, não houve uma regularização artificial do rio, o que hoje em dia é muito raro. Algumas alterações são naturais, os rios são dinâmicos e podem mudar o seu curso, a questão é quando somos nós a alterá-los: dizimamos por completo o ecossistema porque não está em sintonia com as dinâmicas da areia, da fauna e da flora. Mudar por completo a fisionomia de um rio é bloqueá-lo. Saiu um estudo a semana passada que diz que só 1/3 dos principais rios do mundo é que continua livre. É a alteração por completo das leis do planeta, tudo em prol de captar e edificar mais.”
E quanto ao lado emocional? “Não sei se alguma vez fizeste rafting ou canoagem. Há outra sensação ali. O facto de tu seres só mais um no meio do que está à tua volta versus estares num lago de água estagnada, podre, quase sem vida. Não é a mesma experiência. É um dos poucos sítios que ainda é verdadeiro.” Então será que uma barragem é sempre uma má ideia? “Atenção, as barragens são necessárias para muita coisa e nós vamos continuar a precisar delas durante muito tempo. O que nós defendemos é que não são precisas tantas. Num país como Portugal estamos a falar de 8.000 barreiras nos nossos rios, entre açudes, barragens grandes, barragens pequenas e mini hídricas. São mais do que suficientes. Os rios são as veias da Terra e os principais ciclos naturais (da água, do azoto, da recuperação dos solos), são também eles que transportam os sedimentos que impedem a erosão costeira. Bloquear um rio é como bloquear uma veia. O sistema até pode continuar a viver, mas vamos ter um grave problema de saúde.”
O trabalho do projecto Rios Livres e do GEOTA é salvar estas veias, contra os enfartes do planeta. O primeiro passo para que Ana se tornasse numa ‘cardiologista ambiental’ aconteceu nos cenários idílicos dos rios Sabor e Tua. “Quando tu passas 3 ou 4 dias em sítios que daqui a uns meses vão desparecer do mapa isso marca-te. Era de uma tal beleza, uma plenitude de paisagens absolutamente inigualáveis. Acabei por me juntar como voluntária e entretanto passaram 8 anos.”
Pelo meio Ana criou o Projeto Rios Livres “em conjunto com outros voluntários, éramos amigos e começámos a fazer guerrilha, campanha, manifestações, ativismo…” Após a licenciatura em química fez mestrado em ambiente e trabalhou alguns anos em investigação química e química ambiental “até que percebi que a investigação que eu estava a fazer não servia para nada e até agravava os problemas. És sempre financiado por alguém. Quando estás a trabalhar para farmacêutica é menos mau, mas se estás a trabalhar para agroquímica, para a indústria…”
Segundo Ana, mesmo os estudos feitos nos laboratórios das universidades podem estar sujeitos a serem implementados em indústrias poluentes. “O desenho da nossa economia não faz sentido nenhum e portanto decidi mudar.”
O bichinho do ativismo surgiu e a solução para mudar a economia selvagem resume-se numa palavra: “Decrescimento.”
Será que o capitalismo deveria ter os dias contados? “A começar pelo facto de medirmos o nosso desenvolvimento pelo PIB, que pressupõe sempre a extração de um recurso e o lucro associado. Se tu tiveres uma grande catástrofe, um grande tsunami por exemplo, e nós precisarmos de um investimento brutal para conseguir recuperar o que foi destruído, o PIB vai aumentar. Podem ter morrido milhares de pessoas, pode ter ficado tudo destruído, mas é o que acontece. Não faz sentido continuar a medir-nos, a nós enquanto sociedade, com um indicador que implique explorar mais. E estamos a deixar de ter recursos para explorar no mundo.”
Deveríamos adoptar o FIB (Felicidade Interna Bruta)? “Sim, o Butão mede o índice de felicidade. Sá aceitam 6 mil pessoas por ano. 6 mil vistos. Gostava imenso de ir.”
Mudarmos todos para o Butão é impossível, qual será a solução para a humanidade? Parar um bocadinho para prestar atenção aos desequilíbrios que espreitam em cada canto? “Se calhar voltarmos a perceber o que é que tem valor. O consumidor pensa: o que é que eu visto? o que é que eu como? onde é que eu ando? Mas falta o ‘eu enquanto cidadão”.
Ana salienta que enquanto consumidora há muitas questões a ter em conta, usar ou não usar palhinha biodegradável, escolher ou não escolher plásticos recicláveis, comer ou não comer carne, mas acredita que está longe de ser suficiente. “Mesmo que eu tenha o mais ecológico dos tipos de vida, sozinha não vou conseguir mudar a larga maioria dos processos de destruição ambiental que existem no mundo. Só quando pensarmos menos no ‘eu’ e no consumo é que nós vamos mudar.”
Passa por caminhar para uma economia de partilha, o que implica consumir menos e não apenas um consumo mais sustentável. Essa mudança pode levar várias gerações a acontecer? “Existe um certo outsourcing de consciência, ‘isso já não somos nós que vamos mudar’. São sempre as próximas gerações, mas não, é agora. É agora que fazemos essa alteração.”
Fazer o ponto de embraiagem em ruas íngremes e as injustiças com expropriações são duas situações que deixam Ana inquieta. “Há um lado que me levou a trabalhar com rios que tinha a ver com a engenharia do ambiente, mas depois há o lado humano que te leva a continuar a lutar. É tão discrepante a pessoa que toma a decisão e quem sofre com ela, que tem zero a dizer na decisão. Andam a expropriar aos bocadinhos e nunca expropriam na totalidade para não pagarem a propriedade no total e fazem-te a vida negra. Vencerem as pessoas pelo cansaço, não sei se é a coisa que me deixa mais inquieta, mas é a que me faz dizer mais palavrões.”
E o que será que deixa uma ativista quieta? “Por acaso sou uma ativista muito quieta, o que passa por saber dar prioridade às coisas. Há muitos ambientalistas que entram num processo tal de stress e angústia que não conseguem parar de falar do assunto e até entram num processo de burn out. Eu, de alguma forma, consigo desligar e fazer as coisas que gosto. Continuo a fazer os passeios que sempre fiz, a apanhar banhos de sol, a ler um livro por mês, a beber um chá ou um copo de vinho… ou seja a estabilidade emocional tem de ser mantida.”
Ou seja, consegue separar as águas. “É cansativo teres de lidar com problemas, quando te dizem que houve mais uma descarga no Tejo e são 9 da manhã de um domingo… é mais incerto conseguires conciliar a vida profissional com a vida pessoal. Se não levares a coisa com calma é mais difícil.”
“O que poderia ser feito mais devagar? Estarmos com os outros. Estar contigo próprio. Estar. Mais devagar. Prende-se com o que dás valor ou não, no final do dia, e como eu acho que andamos sempre a dar valor às coisas erradas.”
Entre dois copos de água fresca, perguntámos o que será mais urgente corrigir neste no mundo e Ana responde sem pinga de hesitação: A corrupção. Falta de transparência. Falta de envolvimento. Lá está, se cada um de nós não está envolvido nas tomadas de decisões faz com que fique muito centrado em si e nas coisas que consegues fazer para melhorar o teu bem-estar ou dos poucos que estão à sua volta.”
A conversa vai parar ao tema muito lusitano do discurso derrotista de descrença, dos braços cruzados e da bolha metafórica que a publicidade de um iogurte probiótico deu ao mundo. “Há uma constante indignação por parte das pessoas, mas muito pouca ação. Se sentires que és livre de pensar ‘eu gostava que o mundo fosse mais isto ou mais aquilo’, se pensares que ao fazeres a, b, c e d, e chegar lá, apenas com os entraves normais das democracias, com sistemas que congregam as opiniões de várias pessoas, tu sentes-te muito mais ‘empoderado’ em mudar as coisas à tua volta. Agora, se tens sistemas que são obscuros, corrompidos por dentro, se os processos são morosos, se sentes que te falta poder enquanto cidadão, tens tendência a blindar-te em mudar as coisas à tua volta e vão todos ser assim, todos na bolha L Casei Imunitass, centrados neles próprios (com todo o respeito por quem faz introspeção).”
Os problemas ambientais e nos rios “estão sempre relacionados com alguma falha no processo, com algum procedimento absolutamente corrompido, há sempre alguma coisa que cheira mal.”
Ana nunca confrontou cara a cara uma pessoa corrupta, mas corrompida sim. “É óbvio que a resposta não é boa. És recebido com 7 pedras na mão e fazem-te a pior coisa possível: não têm uma discussão sobre o acto que estás a discutir. Começam por te colocar o chavão de “maluquinha da cabeça”, ambientalista fundamentalista, extremista. Já tive até um comentário de terrorista.”
Como é que se explica a alguém assim, com toda a calma do mundo, a importância do trabalho de um ativista? Ana segue a regra de Mark Twain, “nunca discutas com um idiota. Ele arrasta-te até ao nível dele, e depois vence-te em experiência”. “Quando alguém te chama terrorista ou extremista é uma conversa a não ter. Nos outros casos só chego ao ativista no final da explicação. Digo primeiro que trabalho em conservação da natureza e aí as pessoas percebem que é importante. E o que é que isso implicar? Implica ser ativista.”
Para algumas pessoas a imagem de um ativista significa estar aos gritos em frente à Assembleia da República, curiosamente a sede do projecto Rios Livres fica a poucas ruas do Parlamento. “Aos gritos é tão raro. Mas quando esgotas a capacidade de reunir com decisores, desde presidentes de câmara, a candidatos a presidentes de câmara, ministros, secretários de estado, deputados, quando já não tens uma plataforma de diálogo e não consegues trazer o assunto para a discussão publica, então fazes manifestações públicas.”
O trabalho de ativistas como a Ana é deixar vírus positivos nas cabeças dos políticos. “Antes das eleições costuma haver um copy paste de algumas ideias nossas nos programas deles, o que é perfeito, é o que nós queremos: influenciar. Copiem tudo, por favor.”
Perante a pergunta se Ana se sentia ‘deste tempo’, deu-nos a resposta mais imediata de todas. “Não.” Será que se gostaria de viver no século XIV? “Nessa altura teria poucos direitos enquanto mulher. Quando digo que não sou deste tempo, é porque não me sinto com a idade que tenho. Sou um bocadinho uma old soul nas coisas que valorizo como pessoa. Sinto-me mais antiga e sempre gostei de estar na companhia de pessoas mais velhas, de aprender com pessoas mais velhas, de programas que tendencialmente são para pessoas mais velhas. Tem mais a ver com o estilo de vida. Gosto da sabedoria que traz a idade. Conhecimento é uma coisa que tens ou não tens, mas quando estás com pessoas que já passaram por outras coisas, têm outra forma de ver os problemas.”
Idades à parte, será que cada um de nós tem um conflito entre o seu consumidor e cidadão interiores? “Tenho muitos dilemas a pensar como as pessoas poderiam voltar a valorizar algo que não conhecem, sobretudo na faixa etária dos meus pais, sobre a agricultura antes dos pesticidas. Não sei se esse conhecimento se perdeu, se existe uma visão clara para algumas gerações sobre o tempo e qualidade versus a quantidade. Nas últimas décadas vendeu-se este mito de ser necessário um certo tipo de agricultura para alimentar o mundo.”
E como voltamos a uma época sem pesticidas? “Os solos têm um ritmo, a utilização do recurso hídrico tem um ciclo. O facto de estarmos a desgastar um solo e a torna-lo cada vez menos fértil ao adicionar químicos, leva a perder qualidade no longo prazo. Portanto é preciso ter um produto que tendencialmente demora mais tempo a ser produzido, que o rendimento por hectare vai ser mais reduzido também, mas eu vou ter muito melhor qualidade e muito mais respeito pelas gerações vindouras, ao preservar os recursos que eu não consigo replicar. Eu não consigo fazer solo nem consigo fazer água.”
Então como se alimenta, 7 mil milhões de bocas? “Há que recordar que 1/3 da alimentação mundial é desperdiçada pelo caminho. Se calhar o problema não é alimentar quase 8 mil milhões, é saber onde é que os alimentos são distribuídos. Acontece o mesmo com as barragens, a larga maioria são para a agricultura, mas depois vais ver os campos e não têm nenhuma forma de retenção natural para a água no local onde ela cai. Vês campos completamente terraplanados com morfologia adaptada para conseguir extrair o máximo por hectare e não tens forma de assegurar diversidade de espécies plantadas, ou seja, quando há um praga vai tudo a eito, porque é só uma cultura. Se tivesses pequenas bacias de retenção seria preciso regar muito menos. Com a rotação e alteração de culturas, cada uma daquelas plantas poderia retirar nutrientes diferentes do solo e depositar outros, necessários para as culturas seguintes.”
E eis que a conversa chegou ao sabor de um tomate verdadeiro, sem químicos, sem rasteiras e sem pressas, Ana congratulou-se. “É bom que haja esses exemplos porque há 10 anos atrás, falar de agricultura biológica era falar de gourmet. E hoje em dia vais a um supermercado normal e já tens múltiplas opções de azeite, vinho, quase tudo, em modo biológico. A mensagem que passa é muito positiva: há empresas que conseguem fazer a sua vida normal, nem sequer vou discutir as taxas de lucro, ou seja enquadram-se no mercado mas também respeitam os ritmos da natureza.”
Infelizmente a maioria das empresas ainda vive na lógica de aumentar os lucros todos os anos, enquanto esse paradigma não mudar… “Se calhar tem de haver um limite ao lucro, mas isso é outro debate. Que eu saiba só existem os tetos salariais (em países como a Dinamarca) e os rácios entre a pessoa que mais ganha e a que menos ganha numa empresa. Com uma margem de lucro máxima, a distribuição da riqueza seria mais justa.”
O trabalho de ativista passa muito por pressionar a classe política, e acredita que essa a mudança começa mais nas pequenas comunidades do nas mudanças macro ao nível do Estado ou da União Europeia. “Eu acredito no bottom-up, cada vez mais pessoas a fazer pressão e a demonstrar que alguma coisa acima tem de mudar. A questão dos direitos dos animais foi um movimento que surgiu debaixo e subiu até às camadas superiores. Hoje os animais são muito mais defendidos.”
O que será nos dias de hoje, com toda a informação disponível, um consumidor consciente? Aqueles que comem carne e usam sacos de plástico deveriam sentir-se um bocadinho culpados? “Eu sou flexitariana, maioritariamente vegetariana, mas faço as excepções que me apetece, desde que não seja uma espécie em perigo como o atum ou a sardinha.” Ana tenta ser uma consumidora consciente e não alinha com o epíteto de ‘fundamentalista’ que chamam às pessoas que cortam radicalmente com carne e afins. “Quem toma decisões de forma mais regrada do que eu, não é necessariamente fundamentalista, é alguém com preocupação pelo bem-estar geral. Ver essas pessoas como mais ou menos extremistas não faz sentido. Estão a tomar uma decisão que merece ser respeitada.”
Quando uma pessoa come carne todos os dias, provavelmente não vai sofrer as consequências disso, mas a próxima geração vai de certeza. Por outro lado Ana nunca esquece que a informação ambientalista não chega a toda a gente, seja a quem vive em Freixo-de-Espada-à-Cinta ou a quem recebe 600 euros por mês, passa horas entre o trabalho, a escola e a casa, sem tempo para demolhar o bacalhau. “O consumo rápido passou a simbolizar a melhoria da qualidade de vida e acabou o grão a granel. E claro que é prático, abrir uma lata de grão já cozido e fazer a comida, poupa-te tempo. Mas essa poupança de tempo, no somatório de todas as pessoas, leva ao desgaste por completo dos nossos recursos.”
Por outro lado, o tempo que se poupa a cozinhar nem sempre vai para o melhor destino. “Esse consumo mais rápido do grão em lata, esse pedires um glovo, veio-te apenas garantir que tens mais tempo para estares a trabalhar.”
Vivemos tempos apressados de comida rápida e refeições à pressa, mas é importante aprender a apurar mais. A cozinha tem algo para nos ensinar: tudo tem um tempo. Não se pode falsificar o tempo de crescimento da massa de um bolo. “Eu adoro cozinhar, é o meu momento zen. Ponho música e fico ali duas, três horas. Gosto de apurar e de inventar.”
Entre os 10 milhões de portugueses são muito poucos aqueles com o luxo do tempo para si e para a família. “Eu inventei o lado bom dos transportes públicos: poupo num carro, é uma solução ambiental e leio um livro por mês. As pessoas trabalham demais e perdem qualidade de vida. Quase que é inevitável teres um carro, fazeres da cozinha uma coisa pré-confecionada que encomendas… É triste que se tenha exigido às pessoas esse estilo de vida.”
Às tantas a ativista pensa em voz alta: “se calhar outra regra que se deveria criar é ter um limite de horas de trabalho”, ou seja, leis laborais impossíveis de falsificar com o truque das horas extraordinárias, aquelas que legalmente parecem não ter limites. “Não é justo, estão a tirar tempo às pessoas.”
Uma das missões mais especiais em que Ana se envolveu, foi em nome da proteção de um dos rios mais belos de Portugal (ideal para a prática de desportos de águas bravas). A Plataforma Salvar o Tua alertava para o disparate monumental da construção da Barragem de Foz Tua, que ia submergir centenas de hectares agrícolas, inseridos na região do Douro Vinhateiro (património mundial da Unesco). A obra da EDP tinha a ambiciosa meta de produzir 0,1% da energia do país. “Eu conheci o Esporão durante a campanha do ultimo ano do Tua. Eles fizeram quatro mini-documentários realizados pelo Jorge Pelicano que serviram para divulgar o site da plataforma. Quando lançamos o site a barragem estava muito perto de ser concluída, mas não me lembro de uma campanha ambiental que tenha tido um resultado como aquela. 22 mil cartas e emails enviados à UNESCO! É muito milhar de gente. Não foi a tempo, mas fez uma coisa. Nestes processos de transformação, conseguimos mudar a percepção de que barragens são sempre positivas. ‘Tudo o que é renovável é bom’, isto é um mito.”
Num dos documentários podemos ouvir Pedro Duarte, agricultor afectado pelo barragem, dizer ‘nem todo o dinheiro do mundo paga as árvores que eu e os jovens desta terra plantámos e que já desapareceram”.
As lutas dos ativistas e dos agricultores à beira de verem o futuro ser afogado por águas e negócios mal cheirosos, vencem-se com persistência. “Isto nunca é uma campanha, nunca é uma votação, nunca é uma ação, nunca é aquele vídeo… é tudo. E no final, vemos a diferença. Há esforços e conquistas bonitas que conseguimos enquanto seres humanos. A igualdade de género, por exemplo. O papel que a mulher tem hoje comparado com há 30, 40 anos. A luta dos direitos LGBTI. O facto de ter passado uma lei há pouco tempo que irá proibir fruta e vegetais embalados em plástico. Há coisas que enquanto humanidade estamos a tentar fazer e até vão dando resultado. O problema é tudo o resto que ainda falta fazer.”
O que será que uma mulher com uma old soul tem aprendido com pessoas mais velhas? “Tenho uma paixão e fascínio pela ferrovia, pelo funcionamento dos comboios. É algo que veio do meu avô, que aprendi com ele. Com a minha avó aprendi a gostar de estar sozinha, a gostar de passar tempo com os outros em silêncio.”
É nas antípodas de uma selfie com um fotogénico capuccino, num impecavelmente decorado café com um filtro de Instagram e um obsceno número de likes, que surge a confidência de Ana: “Não é preciso estar a fazer coisas e estar a mostrar que se está a fazer coisas. É só o estar. Consigo estar com a minha avó uma tarde em silêncio a fazermos alguma coisa juntas. É aí nesse estar e partilhar de momento que se partilham certas ideias de outros tempos. E aí sinto que a conheço.”
Para Ana a inspiração a montante não é exclusivamente familiar e lembra-lhe uma história junto às margens do rio Tâmega. “Era um produtor de vinho, na zona de Gatão (Amarante), com quem passámos uma tarde e noite inteiras em frente a uma lareira, a beber o seu vinho porque ele não queria falar connosco até passarmos um teste. Recitou poemas de Camões de cor até que começou a explicar a importância que o rio tinha na sua vinha. A descrição que ele fez da água ali ao lado permitir que a vinha respirasse, foi magnífica, dizia que a respiração via-se nas madrugadas. Se o rio fosse retido mais acima a possibilidade de sentir a terra a respirar iria desaparecer. Nunca conseguirei replicar as palavras dele, mas aquele conhecimento é algo que só encontras muito de vez em quando.”
O senhor camoniano da história era alguém que claramente percebia a dinâmica da vida: o uso do solo, do clima e da água, em sintonia com as espécies que plantava, até ao produto final, naquele caso, o vinho. “Existe um nível de sintonia com o ecossistema que já passou para o nível da poesia. Esse espírito é muito bonito.”
Ana Brazão
A guardadora de rios
Entrevista realizada dia 17 de Maio de 2019 durante um café no espaço Corações Com Coroa Café, em Lisboa.
O rio que corre pela sua aldeia é o Tejo. Ana Brazão é uma lisboeta acidental, não porque nasceu na capital portuguesa de passagem, mas porque a vida citadina de Lisboa oferece-lhe pouco daquilo que gosta de fazer nos tempos livres: rafting e diálogos silenciosos. Foi precisamente a descida de uns rápidos que ajudou Ana a largar um futuro em laboratórios de química e a deixar-se levar pelo bichinho do ativismo ambientalista.
Antes de um fim-de-semana de rafting, trekking e canoagem, organizado pela GEOTA (GEOTA – Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente), não fazia ideia que os rios estavam em perigo, mas na segunda-feira seguinte o mundo tinha uma cidadã mais consciente, que viria a criar o projecto Rios Livres, em defesa de rios livres e limpos. Há quem lhe chame maluquinha da cabeça por lutar contra barragens desnecessárias e expropriações sem ai nem ui, para nós é uma guardadora de rios, esses cursos de água doce que se querem fluentes, como uma boa conversa.
"Por acaso sou uma ativista muito quieta, o que passa por saber dar prioridade às coisas."
"O que poderia ser feito mais devagar? Estarmos com os outros. Estar contigo próprio. Estar. Mais devagar."
"Não sou deste tempo porque não me sinto com a idade que tenho. Sou um bocadinho uma old soul."
"Gosto da sabedoria que traz a idade."
"Adoro cozinhar, é o meu momento zen. Ponho música e fico ali duas, três horas. Gosto de apurar e de inventar."
"Não é justo, estão a tirar tempo às pessoas."
"Com a minha avó aprendi a gostar de estar sozinha, a gostar de passar tempo com os outros em silêncio."
"Consigo estar com a minha avó uma tarde em silêncio a fazermos alguma coisa juntas."
"Existe um nível de sintonia com o ecossistema que já passou para o nível da poesia. Esse espírito é muito bonito."
Numa tarde quente de Maio, entre cafés e copos de água, quisemos, sem demoras, perceber o que é afinal um rio livre. A resposta veio em duas parte, a primeira técnica, a segunda emocional. “Tecnicamente um rio livre é aquele que não tem alteração à sua morfologia, ou seja, o leito e as margens não foram alterados, não houve uma regularização artificial do rio, o que hoje em dia é muito raro. Algumas alterações são naturais, os rios são dinâmicos e podem mudar o seu curso, a questão é quando somos nós a alterá-los: dizimamos por completo o ecossistema porque não está em sintonia com as dinâmicas da areia, da fauna e da flora. Mudar por completo a fisionomia de um rio é bloqueá-lo. Saiu um estudo a semana passada que diz que só 1/3 dos principais rios do mundo é que continua livre. É a alteração por completo das leis do planeta, tudo em prol de captar e edificar mais.”
E quanto ao lado emocional? “Não sei se alguma vez fizeste rafting ou canoagem. Há outra sensação ali. O facto de tu seres só mais um no meio do que está à tua volta versus estares num lago de água estagnada, podre, quase sem vida. Não é a mesma experiência. É um dos poucos sítios que ainda é verdadeiro.” Então será que uma barragem é sempre uma má ideia? “Atenção, as barragens são necessárias para muita coisa e nós vamos continuar a precisar delas durante muito tempo. O que nós defendemos é que não são precisas tantas. Num país como Portugal estamos a falar de 8.000 barreiras nos nossos rios, entre açudes, barragens grandes, barragens pequenas e mini hídricas. São mais do que suficientes. Os rios são as veias da Terra e os principais ciclos naturais (da água, do azoto, da recuperação dos solos), são também eles que transportam os sedimentos que impedem a erosão costeira. Bloquear um rio é como bloquear uma veia. O sistema até pode continuar a viver, mas vamos ter um grave problema de saúde.”