Joanna Hecker
Entrevista realizada dia 7 de Maio de 2019 durante um almoço na Taberna Sal Grosso, em Lisboa.
A arte de perder tempo
Fun fact: O que é que Malcolm X, Steven Seagal e Joanna Hecker têm em comum? São todos filhos de Lansing, capital do estado do Michigan, nos Estados Unidos da América. A cidade é conhecida pelas suas fábricas de automóveis e reconhecida pela universidade. Da união destes dois mundos, família de colarinho azul e familiares de colarinho branco, surgiram as três irmãs Hecker, com Joanna no meio. Porque os pais trabalhavam na administração da universidade a nossa entrevistada praticamente cresceu no campus, envolvida por estudos de todas as áreas.
Há cerca de 8 anos apaixonou-se por um português do século XVI e mudou-se do rebuliço de Nova Iorque para a vida calma de Lisboa.
Entretanto, depois de concluir uma tese de doutoramento em história de arte sobre Francisco de Hollanda (o tal português) tem estado em muitas frentes: co-organizar e fazer as inspiradoras apresentações das bandas que tocam nas Lisbon Living Room Sessions, ser responsável pela área das parcerias internacionais da Trienal de Arquitectura, traduções e vários projectos de escrita, incluindo um livro in the making, ou seja, uma série de atividades que são uma inteira violação dos seus princípios. O que Joanna mais queria era uma vida calma, unplugged, aborrecida e cheia de nada, para preencher com sua família, os seus amigos, as suas ideias e o seu cão, Milo.
"Uma amizade pode entrar na categoria de família se investirmos tempo."
"À medida que estou mais velha sinto que é cada vez mais importante desacelerar e parar."
"Eu não absorvo as coisas, eu fico completamente absorvida por elas."
"O vazio é o cheio noutra forma, é um espaço que pode ser preenchido com tudo o que quisermos! Estar vazio é estar cheio de espaço."
"Tempo não é dinheiro. Isso é tão errado. Tempo é amor. Tempo é vida. Tempo é tudo. Sem tempo, não somos nada."
"Em teoria quando ficamos sem dinheiro, há muitas maneiras de fazer mais. Quando se esgota o tempo que temos, acabou, não podemos fazer mais."
"Mais e mais e mais estou a tentar fazer menos e menos e menos."
"O objectivo é conseguir abrandar, parar, silenciar e depois ver o que acontece. Isto é uma espécie de linha filosófica orientadora para mim."
"O valor de todas aquelas horas é imensurável de uma forma que eu não consigo explicar."
Será possível identificar os traços que Joanna herdou dos dois lados da família? “Do lado da minha mãe são mais afectuosos e expressam os sentimentos com facilidade, são barulhentos, muito altos, humildes e com um farto cabelo encaracolado. A origem é sérvia. Do lado do meu pai são muito espertos (às vezes demasiado), tendem a ser críticos e a decepcionarem-se. Querem sempre mais, são endinheirados, com mais estudos e socialmente ambiciosos. A origem é alemã e irlandesa, ou seja, são amigos de beber.”
O resultado destes dois mundos parece muito equilibrado, apesar do cabelo encaracolado impossível de domar. “Não sei. Serei equilibrada ou bipolar? (risos) Só para esclarecer, não sofro desse transtorno, já verifiquei.”
A nossa conversa num misto de inglês e português é bastante fluida, não só porque o umami do almoço ajuda, mas também porque a interlocutora tem um discurso sedutor, com pausas e repetições dramáticas um pouco ao estilo de Barack Obama, seja qual for o tema, arte, capitalismo ou o vazio. “Tempo, tempo, tempo… é muito mais valioso que dinheiro” é algo que nos vai dizer mais à frente.
“Os laços não têm de ser de sangue. As relações que entram na categoria de família precisam de autenticidade, disponibilidade e honestidade ao longo do tempo. E também de vulnerabilidade, alegria e gargalhadas. É a capacidade de nos irmos aceitando uns aos outros (e a forma como mudamos) de forma flexível e adaptável, nos tempos bons e maus, nos bons e maus humores. O que define a família é ser testado, lado a lado.” Depois de pedirmos mais vinho, porque os jarros da casa pareciam minúsculas garrafas de saké, fizemos um cheers e regressámos à família biológica. “Tenho dois pais, duas irmãs, dois cunhados e os meus sobrinhos que adoro, somos uma família perfeitamente imperfeita. Todos sabemos dos defeitos uns dos outros, ex-tre-ma-men-te bem. Eles sabem quão idiota (‘asshole’ no original) eu posso ser e eu sei como eles conseguem ser idiotas. Sabemos há muito tempo.”
Tédio, aborrecimento ou boredom, não interessa qual é a palavra, mas sim a forma como se preenche ou não esse espaço-tempo. “Éramos de uma geração que ainda se aborrecia.” Ainda se lembra dos longos verões em família e de os preencher de muitas formas, incluindo brincar com lama e paus. “É um privilégio e eu tenho saudades.” Abraçar o tédio é fundamental. “Os ecrãs dos telemóveis e computadores obliteram não só o tédio mas também roubam a atenção das nossas mentes que poderiam estar a fazer outras coisas.” Por um lado o aborrecimento é algo precioso para ocupar de forma inteligente, “mesmo que não tenha absolutamente nada para fazer, há biliões de livros que quero ler, biliões de palavras que quero escrever”, mas por outro é sintomático de uma doença preocupante, “um adulto a dizer ‘Ó meu deus, preciso de preencher este vazio! Tenho de viajar, preciso de beber, preciso de fazer sexo com alguém, preciso de seja o que for.’ Vida social! Vida social! Vida social! É uma falta de imaginação e de vida interior. O território interno é tão rico e vasto se nos apercebermos de como o explorar” Não é por acaso que estas ideias soam a conselhos que o próprio Buda poderia ter dito, Joanna pratica regularmente yoga e meditação.
Ouvimos algures que ‘as pessoas querem viver para sempre, mas depois não sabem o que fazer num domingo à tarde’ e Joanna respondeu com uma análise do individualismo vigente. “Somos muito individualistas, mas temos um terror tão grande da solidão que não aguentamos ser a nossa própria companhia. Então afinal quem é este individuo tão forte e seguro de si que não aguenta estar sozinho com os seus pensamentos durante 5 minutos? Precisa de distração e de companhia de forma a evitar-se a si próprio?”
Se te apaixonas por um homem do século XVI, claramente não és deste tempo, certo? “Tudo começou com uma questão em que eu estava particularmente interessada, ‘porque é que os seres humanos gostam tanto de arte?’ Qual é o poder que leva reis, imperadores, governos a investir tanto em obras artísticas? Existem várias teorias sobre as razões por trás das pinturas paleolíticas, mas a mais sedutora diz que nessa época o ato de criar, longe de ser um luxo, era uma forma de intervir na realidade. Tudo parecia inexplicável e incontrolável. ‘Conseguimos caçar? Chove ou não chove?’ Os deuses estavam situados na natureza, na terra, então que maneira melhor de aceder à origem do poder do que ir às entranhas da terra, às cavernas, e entrar em comunhão com esse poder divino?” Ficámos a saber que os espaços onde se encontram as pinturas rupestres não eram galerias com beberetes de inauguração, mas sim locais de difícil acesso de evocação e dá o exemplo das clássicas pinturas em negativo das mãos desses primeiros homenidios, resultantes do acto de cuspir pigmento, uma forma de penetrar na parede de pedra, “o ser humano entra na terra e toca no poder, a obra é um ponto de acesso entre este mundo e o outro, entre o profano e o divino. Esta é uma ideia que continua ao longo da história da arte.” Quando tropeça neste artista, arquitecto e escritor português, a investigadora percebeu que ele “estava a trabalhar com algumas das imagens mais poderosas que os católicos consideravam ser pontos de acesso entre estes dois mundos, imagens de culto da virgem e do menino ou de Jesus Cristo, imagens que eram (e são) consideradas portais entre dois mundos.” Para abrir a porta basta ajoelhar, fazer oferendas e rezar.
“É fascinante, uma espécie de portal entre mundos. Eu não sou católica, trata-se de um fascínio antropológico e Francisco de Hollanda escreveu exatamente sobre estes pontos de contacto entre Deus e os homens. E escreveu de uma forma que nunca ninha tinha sido escrito antes. Fiquei um pouco obecada por ele, em parte porque não havia nada traduzido para inglês. Tive de estudar português para ir o mais próximo possível da fonte e tentar perceber quem ele era.” Alguns vislumbres da mente de Francisco surgiram dos apontamentos nas margens e das frases sublinhadas dos livros que lhe pertenceram, na coleção da Biblioteca Nacional ou no Escorial em Madrid. Uma das vantagens de crescer num campus é poder ver de perto e com luvas brancas, desenhos de Miguel Ângelo no Museu Britânico ou inúmeras “relíquias da experiência partilhada, do sofrimento, da curiosidade e das aventuras humanas.” Para quem tem pouco tempo, a sinopse desta love story é simples: “eu sou uma inadaptada dos tempos em que vivemos. Hollanda é apenas o sintoma da doença.”
A nossa eterna investigadora tem uma característica que algumas pessoas consideram irritante, gosta de ter o seu telefone sem som, sem notificações, sem redes sociais e sem email. “Dizem que eu sou difícil de contactar e confesso que tenho algum orgulho nisso. Calculo que possa ser frustrante, demorar 5 horas a responder a algo urgente…” Joanna estaria completamente fora das redes sociais se não fosse o seu trabalho com as Lisbon Living Room Sessions. “Não gosto do meu smartphone. Tomo notas à mão, uso um calendário de papel e ando sempre com um caderno.”
Então ser lento é algo de bom? “Absolutamente. Eu debato-me com obstáculos, resistências e críticas, mas à medida que estou mais velha sinto que é cada vez mais importante desacelerar e parar.” O que será estar mais velho? Não estamos mais velhos a partir do segundo em que nascemos? “Comecei a pensar nisso antes de realmente ficar mais velha. (risos)”
Segundo a experiência e observação de Joanna o papel das mulheres em sociedade é uma construção social que se baseia no aspecto físico. Essa é a moeda de troca (com o seu prazo de validade associado) e não tanto o que pensam ou como interagem com os outros. “O meu conceito de envelhecimento está directamente ligado ao facto de ser mulher. Tenho 40 anos, sou solteira e muitos dos homens da minha idade namoram com raparigas 15 anos mais novas do que eu. Por alguma razão os homens foram criados para valorizar aquilo que uma mulher de 25 anos lhes pode oferecer.”
Quando começamos a falar dos “outros” Joanna diz: “os outros são aqueles que são uma coisa que eu não sou”. O escritor Miguel de Unamuno terá dito que “o fascismo cura-se lendo e o racismo cura-se viajando” mas será mesmo assim? E se o leitor ou o viajante forem estreitos ao nivel do olhar? “Eu vi muitos ocidentais viajarem no sudeste asiático que tinham os olhos fechados para as pessoas à sua volta. Uma pessoa superficial que viaja pode continuar superficial, egoísta e fechada, quando regressa. É muito fácil usar o mundo como uma manifestação da minha própria superioridade narcisista.” Esta temática toca numa série de expressões recentes: o ‘volunturismo’, ou seja, o turismo de voluntariado de figuras mais ou menos públicas, a virtue signalling (a expressão pública de opiniões e sentimentos para passar a imagem de boa pessoa), o poverty porn e, o famoso complexo do salvador branco, que acompanha muitas viagens até África. Joanna não podia ser mais distinta destas figuras, aliás só viajou de mochila às costas uma vez. “Eu não viajo, eu mudo-me para um sítio, fico lá, alugo uma casa e aprendo a língua.” Poder conhecer países e culturas assim parece ser a melhor forma de estar e de absorver mais coisas. “Eu não absorvo as coisas, eu fico completamente absorvida por elas. Não sei, não tenho a certeza se é uma coisa boa, porque às vezes perco-me.” Mas será que uma pessoa perder-se de forma voluntária não é uma das atividades mais maravilhosas do mundo? “É.” E após uma curta pausa acrescenta: “Será possível que seja a melhor e a pior ao mesmo tempo? A entrega total é maravilhosa mas também é muito perigosa. Tu dissipas-te. E quando perdemos tudo, como é que se reconstrói?”
Há um livro que tem acompanhado as preocupações da lisboeta Joanna, The Lonely City, de Olivia Laing, que fala da gentrificação das emoções. “É sobre a tendência de fazer evaporar tudo o que é desagradável. Pode ser a solidão, a tristeza, a raiva, a dor, a incerteza, seja o que for. Mas quando os pensamentos positivos se sobrepõem a tudo, a vida torna-se bidimensional, sem alma, sem pinga de sangue, artificial. A verdade é que na vida real existem fezes, sangue, sujidade e morte. As pessoas estão constantemente e venderam uma ideia de si próprias, a fazer networking e a anunciarem-se como um produto. É tal e qual a gentrificação das cidades, que limpa os espaços de pessoas e estéticas indesejáveis.”
Joanna não hesita em afirmar que vivemos tempos superficiais. Quando lhe pedimos uma receita para inverter a situação, percebemos que coloca essa questão a si própria todos os dias. “Every single day. Sinto bem fundo nos meus ossos este desejo de viver de forma mais profunda.” Durante grande parte da história da humanidade não houve tempo para a superficialidade, estávamos demasiado ocupados a tentar sobreviver a pestes negras, invasões bárbaras, guerras, doenças provocadas pela industrialização… “Posso dizer-te o que eu faço: passo muito tempo sozinha, a ler e a escrever. Para mim estar só significa estar livre da influência da mente de outros.”
Há aqui uma ideia aparentemente paradoxal. Saber estar sozinho é fundamental para se ter algo para dar aos outros. “Eu adoro pessoas e os meus amigos, mas é o tempo que passo sozinha que me ajuda a cultivar um eu mais rico que posso partilhar. Se não o fizer, quando estou com outras pessoas não tenho nada de único para oferecer, estou só a regurgitar o que recebi de conversas, do Netflix, na, na, nan, não digiro nada que se torne meu, com valor acrescentado vindo de mim.”
Quando perguntaram à cantora Mayra Andrade, que Joanna apresentou na sessão das Lisbon Living Room Sessions de 24 de Setembro de 2017
como sendo alguém que “transcende categorização”, quais eram as músicas que ouvia quando estava sozinha, a resposta imediata não foi uma playlist mais sim ‘quando estou sozinha preciso de silêncio. Sem silêncio não consigo escrever música.’ Para Joanna “o isolamento é crucial mas nem sempre é divertido. Há momentos em que odeio a minha companhia. Às vezes preciso desesperadamente que a companhia de alguém me tire da minha cabeça. Mas se calhar são esses os momentos em que temos de aprender a ficar, não entrar em pânico e perceber se existe algo de fértil ali. Se fugirmos constantemente desse lugar, nunca vamos perceber o que é.”
Temos tempo para uma pausa musical? Obrigado. Em 2014 Joanna e Ricardo Lopes (entrevista aqui) tinham várias coisas em comum, a paixão pelo jazz norte-americano era uma delas. Nesse mesmo ano Joanna esteve de visita a Nova Iorque e descobriu que os seus amigos John e Colleen andavam a servir um cocktail maravilhoso que consistia em música ao vivo, amigos, uma pequena casa em Brooklyn Heights e vinho. De volta a Lisboa Joanna planeou os próximos passos com Ricardo e decidiram fazer algo semelhante com a porta aberta para o jazz, o fado, o folk, os blues, o flamenco e até a música clássica. Nascia assim um projecto musical tão intimista quanto um sofá, primeiro lá em casa e depois em salas espalhadas pela capital. No post inaugural, “Some Like it Hot”, de 30 de Dezembro de 2014, podemos ler assim: “As Living Room Sessions inspiram-se na tertúlia, no salão, na Stammtisch (casa vienense de café, literalmente “mesa cativa”) para criarmos um fórum íntimo para as pessoas. “E assim foi, com a generosidade de muita gente e o apoio do Esporão desde o segundo concerto.” Vale a pena ler o post “Why Are you here?” de Janeiro deste ano para descobrir um pouco mais sobre a entrega quase religiosa à causa.
E agora de volta às questões mais filosóficas que ocupam a mente de Joanna, tal como a dualidade do cheio versus vazio. “É verdade que eu não sou inteiramente deste momento. Se não estamos ocupados, não valemos nada, certo? Esta ideia está tão enraizada em nós que a capacidade de parar, ficar sozinho e abrandar, parece indicar que não somos importantes. Eu trabalho conscientemente para contrariar esse preconceito.”
“O vazio é apenas outra maneira de olhar para o potencial. O vazio é iminência, é o cheio noutra forma, é um espaço que pode ser preenchido com tudo o que quisermos! Estar vazio é estar cheio de espaço. And how fucking beautiful is that?”
Tudo isto está ligado ao conceito de lentidão, abrandar ao ponto em que se consegue realmente parar para assimilar o que nos rodeia. Para uma praia ser paradisíaca é essencial que esteja vazia, certo? “Acontece o mesmo no campo. Desde a revolução agrícola na antiga Mesopotâmia que os agricultores sabem que um terreno para ser fértil e dar origem a boas colheitas, precisa de um período de pousio, um tempo em que está parado, sem sementes, sem estímulos. É deixá-lo descansar. E não é que esteja morto, está a regenerar a vida.” Mas parece que em 2019 ninguém valoriza muito os tempos de pousio e os culpados são vários ismos: individualismo, capitalismo e neoliberalismo.
A luta segue de seguida com idealismo q.b. “Acredito que as formas de capitalismo que fazem o mundo correr têm os dias contados. Tornou-se insustentável. Eu gostaria de viver numa sociedade onde as formas de feminidade e masculinidade fossem mais gentis. Se calhar o tempo e lugar onde eu gostaria de viver ainda não exista. Estou bem ciente da misoginia e da masculinidade tóxica, especialmente em Portugal. Talvez gostasse de viver numa espécie de comunidade utópica hippie, como aquelas que foram imaginadas nos anos 60 e 70 nos E.U.A. Muitos desses valores ainda ressoam profundamente em mim. Os meus pais eram algo hippies, à sua maneira, e criaram-nos com esses valores. Sempre fui uma ativista política.” Tal como o seu compatriota Malcolm X.
“Fundamentalmente precisamos de mais respeito pelo planeta e por todos os seres conscientes, humanos e não-humanos. A seguir talvez fosse necessário mais mútuo respeito, entre sexos e géneros, e um entendimento claro que ‘género’ é um espectro, homem, mulher e uma série de coisas pelo meio.” E chegamos à proposta ativista de um milhão de dólares, uma nova definição de valor. “Dinheiro enquanto principal medida de valor? A sério? Isso é lixado. Precisamos de mudar isso. Na minha sociedade ideal teríamos uma espécie de sistema de trocas.” Leite por ovos, textos por uma boa refeição, uma massagem por uma canção, não há limites para as utopias. “Apesar de eu ser um produto da globalização, afinal de contas sou uma imigrante, muitas das soluções que nós precisamos são locais, são os nossos vizinhos. Jane Jacobs é uma das minhas heroínas atuais e o livro dela, The Death and Life of Great American Cities, é a minha bíblia. É sobre as comunidades e como elas se formam. A vida da rua que nos liga uns aos outros, a co-identificação interactiva que nos leva a preocuparmo-nos com os demais, mesmo quando não são família ou amigos. O truque é enraizarmo-nos bem fundo nas nossas vizinhanças e comunidades, mas depois, a partir daí, dar igual valor às pessoas que estão a fazer o mesmo do outro lado do planeta, noutras vizinhanças e comunidades.
Este movimento “está a acontecer aqui e agora e nós precisamos de dar a nossa energia e o nosso tempo. Tempo, tempo, tempo… é muito mais valioso que dinheiro. Tempo não é dinheiro. Isso é tão errado. Tempo é amor. Tempo é vida. Tempo é tudo. Sem temos, não somos nada. Em teoria quando ficamos sem dinheiro, há muitas maneiras de fazer mais. Quando se esgota o tempo que temos, acabou, não podemos fazer mais.”
Depois da frase que se segue nunca mais ninguém vai chegar a tempo aos encontros com Joanna (e ela é a primeira a dizê-lo). “Quando alguém chega meia hora atrasado para um almoço comigo, eu posso dizer ‘estás a fazer-me perder tempo!’, tempo esse que seria dedicado a outra reunião, telefonema ou email, mas para mim acabaram de me dar 30 minutos cheios de nada! O que é precioso. É uma oportunidade guilt free de ficar sentada com uma página vazia do meu caderno.”
Com o seu trabalho para a Trienal Joanna debruça-se constantemente sobre o efeito da passagem do tempo em obras de arquitectura que podem ficar séculos e séculos de pé. “Dá-nos um sentido de perspectiva. Por um lado as coisas que construímos duram muito mais tempo do que nós, o que nos faz sentir pequenos. Por outro até os edifícios caem. Um edifício que hoje tem 500 anos é muito diferente daquilo que foi quando o construíram. Um corpo, uma identidade, um edifício, tudo está em transformação.”
“Tudo é impermanência, por mais que o tentemos contrariar.” E assim a conversa chega ao conceito slow living e a mais um livro. “Mais e mais e mais estou a tentar fazer menos e menos e menos.” How to Do Nothing: Resisting the Attention Economy, de Jenny Odell, é uma obra que visa recuperar a atenção sequestrada para economia que capitaliza a atenção dos consumidores.
“Não se trata de desacelerar para depois ser mais produtivo no trabalho. O objectivo é conseguir abrandar, parar, silenciar e depois ver o que acontece. Isto é uma espécie de linha filosófica orientadora para mim. O movimento slow toca em tudo aquilo que eu faço, mas infelizmente ando sempre a correr entre o full-time job, o projecto Lisbon Living Room Sessions que é um part-time job mais outros projectos. No fundo todas estas coisas são uma violação dos meus princípios.”
Em que medida é que o ‘vagar português’ seduziu a nossa entrevistada a mudar-se de uma das cidades mais apressadas do mundo (Nova Iorque) para Lisboa? A resposta elogia as típicas longas refeições dos portugueses, mas deixa-nos de sobreaviso, se fosse hoje, talvez Joanna fosse para um país com mais hippies que hipsters, mais time out que burnouts. Curiosamente, poucos dias depois desta entrevista, a Organização Mundial da Saúde revelou a sua lista atualizada de doenças, que conta com duas novidades sintomáticas: distúrbios associados à prática intensiva de videojogos e o burnout ou síndrome do esgotamento profissional.
“As pessoas que eu comecei a conhecer aqui tinham tempo umas para as outras de uma forma que parecia impossível para o meu grupo de amigos em N.Y. São os almoços de três horas sem qualquer problema. São os jantares que começam às 10h da noite e acabam à 1h da manhã mesmo que isso signifique chegar tarde ao trabalho no dia seguinte. É uma coisa subentendida. A questão é: acho que nos 7 anos e meio em que tenho cá estado, isto mudou. Lisboa em particular absorveu aquela cultura da produtividade, pressa e networking a toda a hora. As startups, os nómadas digitais, os crowdfundings, os co-fundings, o networking, todo esta cena digital…” e a frase acaba com um longo sopro.
Será possível reverter a situação? Aparentemente não, “demasiadas pessoas estão embriagadas com toda esta atenção” diz-nos com um pessimismo com cobertura de cepticismo que recentemente chocou com o optimismo slow de Carl Honoré. O autor do livro O Movimento Slow (editado em 2006 pela Estrela Polar) é o principal bandeirante do Slow Movement e esteve recentemente em Lisboa, a propósito da divulgação do estudo e subsequente debate sobre um estilo de vida mais tranquilo, realizado pela Universidade Católica Portuguesa a pedido do Esporão.
Nesse debate Joanna discutiu com Carl se o movimento slow não seria uma ideologia para pessoas privilegiadas que se podem dar ao luxo de parar. “Aqueles de nós que têm problemas em pagar as contas todos os meses não podemos necessariamente dizer ‘vou jantar durante 5 horas porque as pessoas são importantes.’ Há poucas pessoas a adereçar o aspecto do elitismo e por vezes até caem no exagero poverty porn tipo ‘oh sim, estive a viajar pelo Brasil e aqueles pescadores pobres é que sabem o que é a vida slow!’ Sim, até podem saber, mas não glamourizemos a inactividade dos pobres.”
O trabalho que tem desenvolvido com a Trienal já pôs a nossa embaixadora Slow Forward em contacto com inúmeros pensadores de ideias sedutoras.“O arquitecto Steven Bates tem um trabalho fascinante ligado à construção de casas para adultos com 40, 50 anos nos primeiros estágios de demência. Estamos a falar de pessoas que se perdem no caminho entre a cama e a casa de banho e é preciso dar-lhes pistas ao longo dos seus percursos para os ajudar. A questão é entrar no cérebro de alguém para desenhar um ambiente externo e, como seria de esperar, Steven pratica meditação, passa tempo a explorar o seu território interno. Num café que bebemos depois da conferência que veio dar, falámos da importância de desacelerar, de entrar em sintonia com a mente e de questionar o que é a realidade.”
Outro pensador que Joanna não poderia deixar de destacar é o curador da Trienal, Sébastien Marot, que irá inaugurar a 3 de Outubro de 2019 a exposição Agriculture and Architecture: Taking the Country’s Side sobre a relação entre agricultura e arquitectura através da lente da permacultura, filosofia idealista que estimula relações harmoniosas, sustentáveis e mais permanentes entre os ciclos naturais, as plantas, os animais, a gestão de recursos hídricos e as necessidades humanas.
“Passa por questionar, tanto na teoria como na prática, como é que as coisas eram feitas há muito tempo atrás, os antigos métodos de produzir alimentos, cultivar a terra e edificar povoamentos. Talvez seja preciso ocupar um território durante um ano inteiro antes de construir sabiamente, saber onde é que o sol bate no inverno e no verão… As técnicas usadas pelos arquitectos da Herdade do Esporão reflectem esta filosofia, já falaste com eles?” Em breve, ver entrevista com Pedro Jervell, do atelier de arquitetura Skrei. “As formas naturais de regular a temperatura e a humidade, a forma como os edifícios respiram, é tudo parte da razão porque faz sentido a conversa entre a Trienal e o Esporão.”
E entrevista vai longa e a esta hora haverá quem pense que a arte de não perder tempo seria esperar que a Netflix transformasse o pensamento de Joanna num documentário do Netflix, no entanto tal seria uma violação de princípios e falta ainda a última pedra, de volta ao Michigan, região rica em muitos lagos, lagos tão imensos que mais parecem mares. “Eu tenho esta imagem, que me acompanha sempre, da minha mãe, horas e horas e horas a andar na praia, com as mãos atrás das costas, a olhar para o chão e a apanhar pedras. E ela tem o seu critério para aquilo que faz uma pedra merecer ser apanhada. Os nossos critérios são diferentes. Esta pedra (e mostra-nos) é redonda, pequena e suave, cabe na minha mão e anda sempre comigo. Tem duas funções, faz-me pensar na minha mãe e em casa. Faz-me também pensar nessa deliciosa e inútil forma de passar o tempo. De perder tempo. Não tem um propósito, não tem uma função, não tem valor. É apenas uma coleção de pedras, perdidas numa jarra, numa casa. Mas o valor de todas aquelas horas é imensurável de uma forma que eu não consigo explicar.”
Se a pedra de Joana lhe recorda os passeios com a mãe por um lado, lembra-lhe outra pedra um pouco maior, por outro. “Existe uma frase de Dhammapada, um texto sagrado budista, que diz ‘imóvel como a pedra na porta’. Visualizemos uma porta aberta com uma pedra que a segura. O que a pedra faz é manter a porta aberta a tudo e todos. A pedra não diz ‘não, não, não, tu não podes entrar’, a pedra abre a porta, sem opiniões, sem se meter, sem intervir, sem se afeiçoar, sem rejeitar. Esta pedra lembra-me essa qualidade, de me manter quieta a observar a vida como ela passa para a frente e para trás, dentro e fora. Eu ambiciono ser a pedra.”
Obrigado pelo seu tempo. Se por acaso passar por Lansing, lembre-se que é a cidade-natal de Malcolm X, ativista dos direitos humanos que marcou o seu tempo, de Steven Seagal, ator marcial cuja carreira já teve o seu tempo e Joanna Hecker, idealista full-time que sabe parar o tempo.
Fun fact: O que é que Malcolm X, Steven Seagal e Joanna Hecker têm em comum? São todos filhos de Lansing, capital do estado do Michigan, nos Estados Unidos da América. A cidade é conhecida pelas suas fábricas de automóveis e reconhecida pela universidade. Da união destes dois mundos, família de colarinho azul e familiares de colarinho branco, surgiram as três irmãs Hecker, com Joanna no meio. Porque os pais trabalhavam na administração da universidade a nossa entrevistada praticamente cresceu no campus, envolvida por estudos de todas as áreas.
Há cerca de 8 anos apaixonou-se por um português do século XVI e mudou-se do rebuliço de Nova Iorque para a vida calma de Lisboa.
Entretanto, depois de concluir uma tese de doutoramento em história de arte sobre Francisco de Hollanda (o tal português) tem estado em muitas frentes: co-organizar e fazer as inspiradoras apresentações das bandas que tocam nas Lisbon Living Room Sessions, ser responsável pela área das parcerias internacionais da Trienal de Arquitectura, traduções e vários projectos de escrita, incluindo um livro in the making, ou seja, uma série de atividades que são uma inteira violação dos seus princípios. O que Joanna mais queria era uma vida calma, unplugged, aborrecida e cheia de nada, para preencher com sua família, os seus amigos, as suas ideias e o seu cão, Milo.
"Uma amizade pode entrar na categoria de família se investirmos tempo."
"À medida que estou mais velha sinto que é cada vez mais importante desacelerar e parar."
"Eu não absorvo as coisas, eu fico completamente absorvida por elas."
"O vazio é o cheio noutra forma, é um espaço que pode ser preenchido com tudo o que quisermos! Estar vazio é estar cheio de espaço."
"Tempo não é dinheiro. Isso é tão errado. Tempo é amor. Tempo é vida. Tempo é tudo. Sem tempo, não somos nada."
"Em teoria quando ficamos sem dinheiro, há muitas maneiras de fazer mais. Quando se esgota o tempo que temos, acabou, não podemos fazer mais."
"Mais e mais e mais estou a tentar fazer menos e menos e menos."
"O objectivo é conseguir abrandar, parar, silenciar e depois ver o que acontece. Isto é uma espécie de linha filosófica orientadora para mim."
"O valor de todas aquelas horas é imensurável de uma forma que eu não consigo explicar."
Será possível identificar os traços que Joanna herdou dos dois lados da família? “Do lado da minha mãe são mais afectuosos e expressam os sentimentos com facilidade, são barulhentos, muito altos, humildes e com um farto cabelo encaracolado. A origem é sérvia. Do lado do meu pai são muito espertos (às vezes demasiado), tendem a ser críticos e a decepcionarem-se. Querem sempre mais, são endinheirados, com mais estudos e socialmente ambiciosos. A origem é alemã e irlandesa, ou seja, são amigos de beber.”
O resultado destes dois mundos parece muito equilibrado, apesar do cabelo encaracolado impossível de domar. “Não sei. Serei equilibrada ou bipolar? (risos) Só para esclarecer, não sofro desse transtorno, já verifiquei.”
A nossa conversa num misto de inglês e português é bastante fluida, não só porque o umami do almoço ajuda, mas também porque a interlocutora tem um discurso sedutor, com pausas e repetições dramáticas um pouco ao estilo de Barack Obama, seja qual for o tema, arte, capitalismo ou o vazio. “Tempo, tempo, tempo… é muito mais valioso que dinheiro” é algo que nos vai dizer mais à frente.
“Os laços não têm de ser de sangue. As relações que entram na categoria de família precisam de autenticidade, disponibilidade e honestidade ao longo do tempo. E também de vulnerabilidade, alegria e gargalhadas. É a capacidade de nos irmos aceitando uns aos outros (e a forma como mudamos) de forma flexível e adaptável, nos tempos bons e maus, nos bons e maus humores. O que define a família é ser testado, lado a lado.” Depois de pedirmos mais vinho, porque os jarros da casa pareciam minúsculas garrafas de saké, fizemos um cheers e regressámos à família biológica. “Tenho dois pais, duas irmãs, dois cunhados e os meus sobrinhos que adoro, somos uma família perfeitamente imperfeita. Todos sabemos dos defeitos uns dos outros, ex-tre-ma-men-te bem. Eles sabem quão idiota (‘asshole’ no original) eu posso ser e eu sei como eles conseguem ser idiotas. Sabemos há muito tempo.”
Tédio, aborrecimento ou boredom, não interessa qual é a palavra, mas sim a forma como se preenche ou não esse espaço-tempo. “Éramos de uma geração que ainda se aborrecia.” Ainda se lembra dos longos verões em família e de os preencher de muitas formas, incluindo brincar com lama e paus. “É um privilégio e eu tenho saudades.” Abraçar o tédio é fundamental. “Os ecrãs dos telemóveis e computadores obliteram não só o tédio mas também roubam a atenção das nossas mentes que poderiam estar a fazer outras coisas.” Por um lado o aborrecimento é algo precioso para ocupar de forma inteligente, “mesmo que não tenha absolutamente nada para fazer, há biliões de livros que quero ler, biliões de palavras que quero escrever”, mas por outro é sintomático de uma doença preocupante, “um adulto a dizer ‘Ó meu deus, preciso de preencher este vazio! Tenho de viajar, preciso de beber, preciso de fazer sexo com alguém, preciso de seja o que for.’ Vida social! Vida social! Vida social! É uma falta de imaginação e de vida interior. O território interno é tão rico e vasto se nos apercebermos de como o explorar” Não é por acaso que estas ideias soam a conselhos que o próprio Buda poderia ter dito, Joanna pratica regularmente yoga e meditação.
Ouvimos algures que ‘as pessoas querem viver para sempre, mas depois não sabem o que fazer num domingo à tarde’ e Joanna respondeu com uma análise do individualismo vigente. “Somos muito individualistas, mas temos um terror tão grande da solidão que não aguentamos ser a nossa própria companhia. Então afinal quem é este individuo tão forte e seguro de si que não aguenta estar sozinho com os seus pensamentos durante 5 minutos? Precisa de distração e de companhia de forma a evitar-se a si próprio?”
Se te apaixonas por um homem do século XVI, claramente não és deste tempo, certo? “Tudo começou com uma questão em que eu estava particularmente interessada, ‘porque é que os seres humanos gostam tanto de arte?’ Qual é o poder que leva reis, imperadores, governos a investir tanto em obras artísticas? Existem várias teorias sobre as razões por trás das pinturas paleolíticas, mas a mais sedutora diz que nessa época o ato de criar, longe de ser um luxo, era uma forma de intervir na realidade. Tudo parecia inexplicável e incontrolável. ‘Conseguimos caçar? Chove ou não chove?’ Os deuses estavam situados na natureza, na terra, então que maneira melhor de aceder à origem do poder do que ir às entranhas da terra, às cavernas, e entrar em comunhão com esse poder divino?” Ficámos a saber que os espaços onde se encontram as pinturas rupestres não eram galerias com beberetes de inauguração, mas sim locais de difícil acesso de evocação e dá o exemplo das clássicas pinturas em negativo das mãos desses primeiros homenidios, resultantes do acto de cuspir pigmento, uma forma de penetrar na parede de pedra, “o ser humano entra na terra e toca no poder, a obra é um ponto de acesso entre este mundo e o outro, entre o profano e o divino. Esta é uma ideia que continua ao longo da história da arte.” Quando tropeça neste artista, arquitecto e escritor português, a investigadora percebeu que ele “estava a trabalhar com algumas das imagens mais poderosas que os católicos consideravam ser pontos de acesso entre estes dois mundos, imagens de culto da virgem e do menino ou de Jesus Cristo, imagens que eram (e são) consideradas portais entre dois mundos.” Para abrir a porta basta ajoelhar, fazer oferendas e rezar.
“É fascinante, uma espécie de portal entre mundos. Eu não sou católica, trata-se de um fascínio antropológico e Francisco de Hollanda escreveu exatamente sobre estes pontos de contacto entre Deus e os homens. E escreveu de uma forma que nunca ninha tinha sido escrito antes. Fiquei um pouco obecada por ele, em parte porque não havia nada traduzido para inglês. Tive de estudar português para ir o mais próximo possível da fonte e tentar perceber quem ele era.” Alguns vislumbres da mente de Francisco surgiram dos apontamentos nas margens e das frases sublinhadas dos livros que lhe pertenceram, na coleção da Biblioteca Nacional ou no Escorial em Madrid. Uma das vantagens de crescer num campus é poder ver de perto e com luvas brancas, desenhos de Miguel Ângelo no Museu Britânico ou inúmeras “relíquias da experiência partilhada, do sofrimento, da curiosidade e das aventuras humanas.” Para quem tem pouco tempo, a sinopse desta love story é simples: “eu sou uma inadaptada dos tempos em que vivemos. Hollanda é apenas o sintoma da doença.”
A nossa eterna investigadora tem uma característica que algumas pessoas consideram irritante, gosta de ter o seu telefone sem som, sem notificações, sem redes sociais e sem email. “Dizem que eu sou difícil de contactar e confesso que tenho algum orgulho nisso. Calculo que possa ser frustrante, demorar 5 horas a responder a algo urgente…” Joanna estaria completamente fora das redes sociais se não fosse o seu trabalho com as Lisbon Living Room Sessions. “Não gosto do meu smartphone. Tomo notas à mão, uso um calendário de papel e ando sempre com um caderno.”
Então ser lento é algo de bom? “Absolutamente. Eu debato-me com obstáculos, resistências e críticas, mas à medida que estou mais velha sinto que é cada vez mais importante desacelerar e parar.” O que será estar mais velho? Não estamos mais velhos a partir do segundo em que nascemos? “Comecei a pensar nisso antes de realmente ficar mais velha. (risos)”
Segundo a experiência e observação de Joanna o papel das mulheres em sociedade é uma construção social que se baseia no aspecto físico. Essa é a moeda de troca (com o seu prazo de validade associado) e não tanto o que pensam ou como interagem com os outros. “O meu conceito de envelhecimento está directamente ligado ao facto de ser mulher. Tenho 40 anos, sou solteira e muitos dos homens da minha idade namoram com raparigas 15 anos mais novas do que eu. Por alguma razão os homens foram criados para valorizar aquilo que uma mulher de 25 anos lhes pode oferecer.”
Quando começamos a falar dos “outros” Joanna diz: “os outros são aqueles que são uma coisa que eu não sou”. O escritor Miguel de Unamuno terá dito que “o fascismo cura-se lendo e o racismo cura-se viajando” mas será mesmo assim? E se o leitor ou o viajante forem estreitos ao nivel do olhar? “Eu vi muitos ocidentais viajarem no sudeste asiático que tinham os olhos fechados para as pessoas à sua volta. Uma pessoa superficial que viaja pode continuar superficial, egoísta e fechada, quando regressa. É muito fácil usar o mundo como uma manifestação da minha própria superioridade narcisista.” Esta temática toca numa série de expressões recentes: o ‘volunturismo’, ou seja, o turismo de voluntariado de figuras mais ou menos públicas, a virtue signalling (a expressão pública de opiniões e sentimentos para passar a imagem de boa pessoa), o poverty porn e, o famoso complexo do salvador branco, que acompanha muitas viagens até África. Joanna não podia ser mais distinta destas figuras, aliás só viajou de mochila às costas uma vez. “Eu não viajo, eu mudo-me para um sítio, fico lá, alugo uma casa e aprendo a língua.” Poder conhecer países e culturas assim parece ser a melhor forma de estar e de absorver mais coisas. “Eu não absorvo as coisas, eu fico completamente absorvida por elas. Não sei, não tenho a certeza se é uma coisa boa, porque às vezes perco-me.” Mas será que uma pessoa perder-se de forma voluntária não é uma das atividades mais maravilhosas do mundo? “É.” E após uma curta pausa acrescenta: “Será possível que seja a melhor e a pior ao mesmo tempo? A entrega total é maravilhosa mas também é muito perigosa. Tu dissipas-te. E quando perdemos tudo, como é que se reconstrói?”
Há um livro que tem acompanhado as preocupações da lisboeta Joanna, The Lonely City, de Olivia Laing, que fala da gentrificação das emoções. “É sobre a tendência de fazer evaporar tudo o que é desagradável. Pode ser a solidão, a tristeza, a raiva, a dor, a incerteza, seja o que for. Mas quando os pensamentos positivos se sobrepõem a tudo, a vida torna-se bidimensional, sem alma, sem pinga de sangue, artificial. A verdade é que na vida real existem fezes, sangue, sujidade e morte. As pessoas estão constantemente e venderam uma ideia de si próprias, a fazer networking e a anunciarem-se como um produto. É tal e qual a gentrificação das cidades, que limpa os espaços de pessoas e estéticas indesejáveis.”
Joanna não hesita em afirmar que vivemos tempos superficiais. Quando lhe pedimos uma receita para inverter a situação, percebemos que coloca essa questão a si própria todos os dias. “Every single day. Sinto bem fundo nos meus ossos este desejo de viver de forma mais profunda.” Durante grande parte da história da humanidade não houve tempo para a superficialidade, estávamos demasiado ocupados a tentar sobreviver a pestes negras, invasões bárbaras, guerras, doenças provocadas pela industrialização… “Posso dizer-te o que eu faço: passo muito tempo sozinha, a ler e a escrever. Para mim estar só significa estar livre da influência da mente de outros.”
Há aqui uma ideia aparentemente paradoxal. Saber estar sozinho é fundamental para se ter algo para dar aos outros. “Eu adoro pessoas e os meus amigos, mas é o tempo que passo sozinha que me ajuda a cultivar um eu mais rico que posso partilhar. Se não o fizer, quando estou com outras pessoas não tenho nada de único para oferecer, estou só a regurgitar o que recebi de conversas, do Netflix, na, na, nan, não digiro nada que se torne meu, com valor acrescentado vindo de mim.”
Quando perguntaram à cantora Mayra Andrade, que Joanna apresentou na sessão das Lisbon Living Room Sessions de 24 de Setembro de 2017
como sendo alguém que “transcende categorização”, quais eram as músicas que ouvia quando estava sozinha, a resposta imediata não foi uma playlist mais sim ‘quando estou sozinha preciso de silêncio. Sem silêncio não consigo escrever música.’ Para Joanna “o isolamento é crucial mas nem sempre é divertido. Há momentos em que odeio a minha companhia. Às vezes preciso desesperadamente que a companhia de alguém me tire da minha cabeça. Mas se calhar são esses os momentos em que temos de aprender a ficar, não entrar em pânico e perceber se existe algo de fértil ali. Se fugirmos constantemente desse lugar, nunca vamos perceber o que é.”
Temos tempo para uma pausa musical? Obrigado. Em 2014 Joanna e Ricardo Lopes (entrevista aqui) tinham várias coisas em comum, a paixão pelo jazz norte-americano era uma delas. Nesse mesmo ano Joanna esteve de visita a Nova Iorque e descobriu que os seus amigos John e Colleen andavam a servir um cocktail maravilhoso que consistia em música ao vivo, amigos, uma pequena casa em Brooklyn Heights e vinho. De volta a Lisboa Joanna planeou os próximos passos com Ricardo e decidiram fazer algo semelhante com a porta aberta para o jazz, o fado, o folk, os blues, o flamenco e até a música clássica. Nascia assim um projecto musical tão intimista quanto um sofá, primeiro lá em casa e depois em salas espalhadas pela capital. No post inaugural, “Some Like it Hot”, de 30 de Dezembro de 2014, podemos ler assim: “As Living Room Sessions inspiram-se na tertúlia, no salão, na Stammtisch (casa vienense de café, literalmente “mesa cativa”) para criarmos um fórum íntimo para as pessoas. “E assim foi, com a generosidade de muita gente e o apoio do Esporão desde o segundo concerto.” Vale a pena ler o post “Why Are you here?” de Janeiro deste ano para descobrir um pouco mais sobre a entrega quase religiosa à causa.
E agora de volta às questões mais filosóficas que ocupam a mente de Joanna, tal como a dualidade do cheio versus vazio. “É verdade que eu não sou inteiramente deste momento. Se não estamos ocupados, não valemos nada, certo? Esta ideia está tão enraizada em nós que a capacidade de parar, ficar sozinho e abrandar, parece indicar que não somos importantes. Eu trabalho conscientemente para contrariar esse preconceito.”
“O vazio é apenas outra maneira de olhar para o potencial. O vazio é iminência, é o cheio noutra forma, é um espaço que pode ser preenchido com tudo o que quisermos! Estar vazio é estar cheio de espaço. And how fucking beautiful is that?”
Tudo isto está ligado ao conceito de lentidão, abrandar ao ponto em que se consegue realmente parar para assimilar o que nos rodeia. Para uma praia ser paradisíaca é essencial que esteja vazia, certo? “Acontece o mesmo no campo. Desde a revolução agrícola na antiga Mesopotâmia que os agricultores sabem que um terreno para ser fértil e dar origem a boas colheitas, precisa de um período de pousio, um tempo em que está parado, sem sementes, sem estímulos. É deixá-lo descansar. E não é que esteja morto, está a regenerar a vida.” Mas parece que em 2019 ninguém valoriza muito os tempos de pousio e os culpados são vários ismos: individualismo, capitalismo e neoliberalismo.
A luta segue de seguida com idealismo q.b. “Acredito que as formas de capitalismo que fazem o mundo correr têm os dias contados. Tornou-se insustentável. Eu gostaria de viver numa sociedade onde as formas de feminidade e masculinidade fossem mais gentis. Se calhar o tempo e lugar onde eu gostaria de viver ainda não exista. Estou bem ciente da misoginia e da masculinidade tóxica, especialmente em Portugal. Talvez gostasse de viver numa espécie de comunidade utópica hippie, como aquelas que foram imaginadas nos anos 60 e 70 nos E.U.A. Muitos desses valores ainda ressoam profundamente em mim. Os meus pais eram algo hippies, à sua maneira, e criaram-nos com esses valores. Sempre fui uma ativista política.” Tal como o seu compatriota Malcolm X.
“Fundamentalmente precisamos de mais respeito pelo planeta e por todos os seres conscientes, humanos e não-humanos. A seguir talvez fosse necessário mais mútuo respeito, entre sexos e géneros, e um entendimento claro que ‘género’ é um espectro, homem, mulher e uma série de coisas pelo meio.” E chegamos à proposta ativista de um milhão de dólares, uma nova definição de valor. “Dinheiro enquanto principal medida de valor? A sério? Isso é lixado. Precisamos de mudar isso. Na minha sociedade ideal teríamos uma espécie de sistema de trocas.” Leite por ovos, textos por uma boa refeição, uma massagem por uma canção, não há limites para as utopias. “Apesar de eu ser um produto da globalização, afinal de contas sou uma imigrante, muitas das soluções que nós precisamos são locais, são os nossos vizinhos. Jane Jacobs é uma das minhas heroínas atuais e o livro dela, The Death and Life of Great American Cities, é a minha bíblia. É sobre as comunidades e como elas se formam. A vida da rua que nos liga uns aos outros, a co-identificação interactiva que nos leva a preocuparmo-nos com os demais, mesmo quando não são família ou amigos. O truque é enraizarmo-nos bem fundo nas nossas vizinhanças e comunidades, mas depois, a partir daí, dar igual valor às pessoas que estão a fazer o mesmo do outro lado do planeta, noutras vizinhanças e comunidades.
Este movimento “está a acontecer aqui e agora e nós precisamos de dar a nossa energia e o nosso tempo. Tempo, tempo, tempo… é muito mais valioso que dinheiro. Tempo não é dinheiro. Isso é tão errado. Tempo é amor. Tempo é vida. Tempo é tudo. Sem temos, não somos nada. Em teoria quando ficamos sem dinheiro, há muitas maneiras de fazer mais. Quando se esgota o tempo que temos, acabou, não podemos fazer mais.”
Depois da frase que se segue nunca mais ninguém vai chegar a tempo aos encontros com Joanna (e ela é a primeira a dizê-lo). “Quando alguém chega meia hora atrasado para um almoço comigo, eu posso dizer ‘estás a fazer-me perder tempo!’, tempo esse que seria dedicado a outra reunião, telefonema ou email, mas para mim acabaram de me dar 30 minutos cheios de nada! O que é precioso. É uma oportunidade guilt free de ficar sentada com uma página vazia do meu caderno.”
Com o seu trabalho para a Trienal Joanna debruça-se constantemente sobre o efeito da passagem do tempo em obras de arquitectura que podem ficar séculos e séculos de pé. “Dá-nos um sentido de perspectiva. Por um lado as coisas que construímos duram muito mais tempo do que nós, o que nos faz sentir pequenos. Por outro até os edifícios caem. Um edifício que hoje tem 500 anos é muito diferente daquilo que foi quando o construíram. Um corpo, uma identidade, um edifício, tudo está em transformação.”
“Tudo é impermanência, por mais que o tentemos contrariar.” E assim a conversa chega ao conceito slow living e a mais um livro. “Mais e mais e mais estou a tentar fazer menos e menos e menos.” How to Do Nothing: Resisting the Attention Economy, de Jenny Odell, é uma obra que visa recuperar a atenção sequestrada para economia que capitaliza a atenção dos consumidores.
“Não se trata de desacelerar para depois ser mais produtivo no trabalho. O objectivo é conseguir abrandar, parar, silenciar e depois ver o que acontece. Isto é uma espécie de linha filosófica orientadora para mim. O movimento slow toca em tudo aquilo que eu faço, mas infelizmente ando sempre a correr entre o full-time job, o projecto Lisbon Living Room Sessions que é um part-time job mais outros projectos. No fundo todas estas coisas são uma violação dos meus princípios.”
Em que medida é que o ‘vagar português’ seduziu a nossa entrevistada a mudar-se de uma das cidades mais apressadas do mundo (Nova Iorque) para Lisboa? A resposta elogia as típicas longas refeições dos portugueses, mas deixa-nos de sobreaviso, se fosse hoje, talvez Joanna fosse para um país com mais hippies que hipsters, mais time out que burnouts. Curiosamente, poucos dias depois desta entrevista, a Organização Mundial da Saúde revelou a sua lista atualizada de doenças, que conta com duas novidades sintomáticas: distúrbios associados à prática intensiva de videojogos e o burnout ou síndrome do esgotamento profissional.
“As pessoas que eu comecei a conhecer aqui tinham tempo umas para as outras de uma forma que parecia impossível para o meu grupo de amigos em N.Y. São os almoços de três horas sem qualquer problema. São os jantares que começam às 10h da noite e acabam à 1h da manhã mesmo que isso signifique chegar tarde ao trabalho no dia seguinte. É uma coisa subentendida. A questão é: acho que nos 7 anos e meio em que tenho cá estado, isto mudou. Lisboa em particular absorveu aquela cultura da produtividade, pressa e networking a toda a hora. As startups, os nómadas digitais, os crowdfundings, os co-fundings, o networking, todo esta cena digital…” e a frase acaba com um longo sopro.
Será possível reverter a situação? Aparentemente não, “demasiadas pessoas estão embriagadas com toda esta atenção” diz-nos com um pessimismo com cobertura de cepticismo que recentemente chocou com o optimismo slow de Carl Honoré. O autor do livro O Movimento Slow (editado em 2006 pela Estrela Polar) é o principal bandeirante do Slow Movement e esteve recentemente em Lisboa, a propósito da divulgação do estudo e subsequente debate sobre um estilo de vida mais tranquilo, realizado pela Universidade Católica Portuguesa a pedido do Esporão.
Nesse debate Joanna discutiu com Carl se o movimento slow não seria uma ideologia para pessoas privilegiadas que se podem dar ao luxo de parar. “Aqueles de nós que têm problemas em pagar as contas todos os meses não podemos necessariamente dizer ‘vou jantar durante 5 horas porque as pessoas são importantes.’ Há poucas pessoas a adereçar o aspecto do elitismo e por vezes até caem no exagero poverty porn tipo ‘oh sim, estive a viajar pelo Brasil e aqueles pescadores pobres é que sabem o que é a vida slow!’ Sim, até podem saber, mas não glamourizemos a inactividade dos pobres.”
O trabalho que tem desenvolvido com a Trienal já pôs a nossa embaixadora Slow Forward em contacto com inúmeros pensadores de ideias sedutoras.“O arquitecto Steven Bates tem um trabalho fascinante ligado à construção de casas para adultos com 40, 50 anos nos primeiros estágios de demência. Estamos a falar de pessoas que se perdem no caminho entre a cama e a casa de banho e é preciso dar-lhes pistas ao longo dos seus percursos para os ajudar. A questão é entrar no cérebro de alguém para desenhar um ambiente externo e, como seria de esperar, Steven pratica meditação, passa tempo a explorar o seu território interno. Num café que bebemos depois da conferência que veio dar, falámos da importância de desacelerar, de entrar em sintonia com a mente e de questionar o que é a realidade.”
Outro pensador que Joanna não poderia deixar de destacar é o curador da Trienal, Sébastien Marot, que irá inaugurar a 3 de Outubro de 2019 a exposição Agriculture and Architecture: Taking the Country’s Side sobre a relação entre agricultura e arquitectura através da lente da permacultura, filosofia idealista que estimula relações harmoniosas, sustentáveis e mais permanentes entre os ciclos naturais, as plantas, os animais, a gestão de recursos hídricos e as necessidades humanas.
“Passa por questionar, tanto na teoria como na prática, como é que as coisas eram feitas há muito tempo atrás, os antigos métodos de produzir alimentos, cultivar a terra e edificar povoamentos. Talvez seja preciso ocupar um território durante um ano inteiro antes de construir sabiamente, saber onde é que o sol bate no inverno e no verão… As técnicas usadas pelos arquitectos da Herdade do Esporão reflectem esta filosofia, já falaste com eles?” Em breve, ver entrevista com Pedro Jervell, do atelier de arquitetura Skrei. “As formas naturais de regular a temperatura e a humidade, a forma como os edifícios respiram, é tudo parte da razão porque faz sentido a conversa entre a Trienal e o Esporão.”
E entrevista vai longa e a esta hora haverá quem pense que a arte de não perder tempo seria esperar que a Netflix transformasse o pensamento de Joanna num documentário do Netflix, no entanto tal seria uma violação de princípios e falta ainda a última pedra, de volta ao Michigan, região rica em muitos lagos, lagos tão imensos que mais parecem mares. “Eu tenho esta imagem, que me acompanha sempre, da minha mãe, horas e horas e horas a andar na praia, com as mãos atrás das costas, a olhar para o chão e a apanhar pedras. E ela tem o seu critério para aquilo que faz uma pedra merecer ser apanhada. Os nossos critérios são diferentes. Esta pedra (e mostra-nos) é redonda, pequena e suave, cabe na minha mão e anda sempre comigo. Tem duas funções, faz-me pensar na minha mãe e em casa. Faz-me também pensar nessa deliciosa e inútil forma de passar o tempo. De perder tempo. Não tem um propósito, não tem uma função, não tem valor. É apenas uma coleção de pedras, perdidas numa jarra, numa casa. Mas o valor de todas aquelas horas é imensurável de uma forma que eu não consigo explicar.”
Se a pedra de Joana lhe recorda os passeios com a mãe por um lado, lembra-lhe outra pedra um pouco maior, por outro. “Existe uma frase de Dhammapada, um texto sagrado budista, que diz ‘imóvel como a pedra na porta’. Visualizemos uma porta aberta com uma pedra que a segura. O que a pedra faz é manter a porta aberta a tudo e todos. A pedra não diz ‘não, não, não, tu não podes entrar’, a pedra abre a porta, sem opiniões, sem se meter, sem intervir, sem se afeiçoar, sem rejeitar. Esta pedra lembra-me essa qualidade, de me manter quieta a observar a vida como ela passa para a frente e para trás, dentro e fora. Eu ambiciono ser a pedra.”
Obrigado pelo seu tempo. Se por acaso passar por Lansing, lembre-se que é a cidade-natal de Malcolm X, ativista dos direitos humanos que marcou o seu tempo, de Steven Seagal, ator marcial cuja carreira já teve o seu tempo e Joanna Hecker, idealista full-time que sabe parar o tempo.
Joanna Hecker
A arte de perder tempo
Entrevista realizada dia 7 de Maio de 2019 durante um almoço na Taberna Sal Grosso, em Lisboa.
Fun fact: O que é que Malcolm X, Steven Seagal e Joanna Hecker têm em comum? São todos filhos de Lansing, capital do estado do Michigan, nos Estados Unidos da América. A cidade é conhecida pelas suas fábricas de automóveis e reconhecida pela universidade. Da união destes dois mundos, família de colarinho azul e familiares de colarinho branco, surgiram as três irmãs Hecker, com Joanna no meio. Porque os pais trabalhavam na administração da universidade a nossa entrevistada praticamente cresceu no campus, envolvida por estudos de todas as áreas.
Há cerca de 8 anos apaixonou-se por um português do século XVI e mudou-se do rebuliço de Nova Iorque para a vida calma de Lisboa.
Entretanto, depois de concluir uma tese de doutoramento em história de arte sobre Francisco de Hollanda (o tal português) tem estado em muitas frentes: co-organizar e fazer as inspiradoras apresentações das bandas que tocam nas Lisbon Living Room Sessions, ser responsável pela área das parcerias internacionais da Trienal de Arquitectura, traduções e vários projectos de escrita, incluindo um livro in the making, ou seja, uma série de atividades que são uma inteira violação dos seus princípios. O que Joanna mais queria era uma vida calma, unplugged, aborrecida e cheia de nada, para preencher com sua família, os seus amigos, as suas ideias e o seu cão, Milo.
"Uma amizade pode entrar na categoria de família se investirmos tempo."
"À medida que estou mais velha sinto que é cada vez mais importante desacelerar e parar."
"Eu não absorvo as coisas, eu fico completamente absorvida por elas."
"O vazio é o cheio noutra forma, é um espaço que pode ser preenchido com tudo o que quisermos! Estar vazio é estar cheio de espaço."
"Tempo não é dinheiro. Isso é tão errado. Tempo é amor. Tempo é vida. Tempo é tudo. Sem tempo, não somos nada."
"Em teoria quando ficamos sem dinheiro, há muitas maneiras de fazer mais. Quando se esgota o tempo que temos, acabou, não podemos fazer mais."
"Mais e mais e mais estou a tentar fazer menos e menos e menos."
"O objectivo é conseguir abrandar, parar, silenciar e depois ver o que acontece. Isto é uma espécie de linha filosófica orientadora para mim."
"O valor de todas aquelas horas é imensurável de uma forma que eu não consigo explicar."
Será possível identificar os traços que Joanna herdou dos dois lados da família? “Do lado da minha mãe são mais afectuosos e expressam os sentimentos com facilidade, são barulhentos, muito altos, humildes e com um farto cabelo encaracolado. A origem é sérvia. Do lado do meu pai são muito espertos (às vezes demasiado), tendem a ser críticos e a decepcionarem-se. Querem sempre mais, são endinheirados, com mais estudos e socialmente ambiciosos. A origem é alemã e irlandesa, ou seja, são amigos de beber.”
O resultado destes dois mundos parece muito equilibrado, apesar do cabelo encaracolado impossível de domar. “Não sei. Serei equilibrada ou bipolar? (risos) Só para esclarecer, não sofro desse transtorno, já verifiquei.”
A nossa conversa num misto de inglês e português é bastante fluida, não só porque o umami do almoço ajuda, mas também porque a interlocutora tem um discurso sedutor, com pausas e repetições dramáticas um pouco ao estilo de Barack Obama, seja qual for o tema, arte, capitalismo ou o vazio. “Tempo, tempo, tempo… é muito mais valioso que dinheiro” é algo que nos vai dizer mais à frente.