Maarten Frankenhuis
Quer voltar para a natureza? Não é tão simples quanto parece.
Quase nada anda mais devagar do que a evolução. Quem o sabe é Maarten Frankenhuis (77), o antigo director do jardim zoológico de Amesterdão, veterinário e investigador. O Esporão visitou-o na sua casa rodeada de vegetação nos arredores da capital holandesa e fez-lhe a pergunta: ainda é possível o homem moderno voltar a uma vida como aquela dos nossos antepassados?
A sua resposta seguiu-se numa palestra privada de três horas sobre os humanos, os animais, a selecção natural, a reprodução e o consumo de energia. “Sobreviver na natureza não é tarefa fácil.”
"Ter algo de comestível a crescer no nosso próprio quintal é algo de profundo."
"Adoro o simples pardal que vem aqui comer migalhas todos os dias. Faz a minha mente vaguear de uma forma maravilhosa."
"Algo está sempre a acontecer no cérebro. Não podemos dizer: não penso em nada ou não faço nada."
"Brincar não é uma actividade inútil. Tem por objetivo a sobrevivência; apanhar a presa e conquistar estatuto no futuro. Mais uma vez, a selecção sexual domina tudo. Brincar é a preparação perfeita para a vida adulta."
O que pensa de as pessoas dizerem que estamos muito afastados da natureza? “Só posso concordar. Hoje em dia, muitas crianças não fazem ideia que o leite vem da vaca, quanto mais o queijo e a manteiga. Albert Heijn tem 55 produtos de aves nas prateleiras, onde apenas um é identificável como sendo uma ave. Era diferente na minha juventude; os animais mortos estavam pendurados na montra, com o sangue a escorrer. É uma pena que, actualmente, tomamos tudo o que comemos como garantido. O orgulho que sinto quando entro em casa vindo do meu jardim com uma grande colheita de endívias é quase tão grande como aquele que senti quando nasceu o meu primeiro filho. Ter algo de comestível a crescer no nosso próprio quintal é algo de profundo.”
Donde vem o seu amor pela natureza? “Quando tinha cinco anos, entrei no jardim. Tínhamos muitas árvores grandes e numa delas vi um pássaro multicolor. Pensei ‘deve ser um pássaro tropical’. Olhando para trás, era um pássaro holandês que procriava na árvore. Esse fascínio por tudo o que vive e cresce nunca desapareceu. Pouco me importa se uma coisa é ou não especial. Adoro o simples pardal que vem aqui comer migalhas todos os dias. Faz a minha mente vaguear de uma forma maravilhosa. Hoje as pessoas olham para os seus telefones quando estão aborrecidas, mas eu recuso-me a participar. Só tenho o telefone comigo quando saio sozinho. É um velho Nokia, e apenas faz chamadas e envia mensagens de texto. Às vezes finjo que estou a tirar uma fotografia para parecer que me integro.”
Então prefere observar pássaros a observar pessoas? “Adoro observar pássaros, mas estou especialmente interessado na reprodução, nas hormonas e na migração. Aquilo que acho mais interessante é a evolução e a selecção sexual. Os animais não se alimentam apenas para sobreviver, mas para sobreviver para poderem reproduzir. A maioria dos animais tem uma época específica de reprodução e, dentro dessa época, existem determinados ciclos de ovulação. Dentro de um desses ciclos, estão férteis apenas por poucos dias. Nesse sentido, os humanos são animais muito especiais. Não só porque o homem é cíclico durante o ano todo, mas também porque estamos preparados para acasalar 365 dias por ano. E também por prazer. O único animal para além de nós que faz isso é a fêmea bonobo. Na época do cio, ela apresenta-se de forma muito chocante e não há qualquer dúvida daquilo que deseja. Além disso, ela utiliza o velho princípio humano de quid pro quo. Qualquer homem entende isso, portanto o bonobo macho corre para a floresta à procura de figos, ovos ou nozes. Se regressa com algo, não entrega logo o seu tesouro porque a fêmea pode enganá-lo. Ela só recebe o prémio após o acto.”
Isso soa muito a prostituição. Parece que muitas coisas que acontecem no reino animal são espelhadas na sociedade humana. Porém, ao mesmo tempo, os humanos e os animais estão mais afastados do que nunca. Poderíamos alguma vez voltar para a natureza? “É possível, mas a sociedade não está orientada para isso. Temos de estar inscritos no registo, ter uma conta bancária e não podemos acampar em qualquer lado. Nesse sentido, estamos cheios de proibições e regulamentos. Além disso, sobreviver na natureza não é tarefa fácil. Quando eu estava a fazer o serviço militar, às vezes tinha tanta sede que apertava os úberes de uma vaca, desenterrava umas batatas e arrancava algumas cebolas do campo. Mas se não houver, então é preciso ter conhecimentos para saber o que podemos comer. A natureza tem tudo, incluindo medicamentos, mas se ingerir oleandros, buxos, teixos e rododendros, por exemplo, pode ser muito perigoso. Também temos que estar dispostos a aprender e dominar muitos ofícios se queremos sobreviver na natureza holandesa; imagine-se a colocar armadilhas, acender fogueiras e entrançar covos.”
Acha que a vida junto e dentro da natureza é relaxada? “Comparado com os agricultores e criadores de gado, os caçadores e colectores têm bastante tempo de ócio. Isto é reconhecido pelas comunidades de caçadores-colectores, como aquelas que se encontram na Papua Nova Guiné e os Índios sul-americanos. Passam muitas horas do dia a fazer sestas, a meditar e a contar histórias. Quando descobrimos que a caça-colecta leva consideravelmente menos tempo do que a agricultura, é surpreendente que as pessoas tenham passado para a agricultura. A nossa vida mudou imenso por causa disso. As comunidades tradicionais de caçadores e coletores eram bastante igualitárias. Também havia poucas diferenças entre homens e mulheres. Quando passámos para a agricultura e a criação de gado, surgiu pela primeira vez a noção de propriedade. Isso transformou tudo.”
E agora destruímo-nos a tentar manter a nossa propriedade enquanto queremos apenas desligar. Isto é difícil porque, mesmo quando estamos inactivos, o nosso cérebro continua. “É preciso lembrar que os nossos cérebros constituem 5% dos nossos corpos, mas consomem 20% da energia que colocamos nos nossos organismos. E à noite também. Por isso, algo está sempre a acontecer no cérebro. Não podemos dizer: não penso em nada ou não faço nada. Podemos dizer: não estou a ler, não estou a estudar ou não estou a lavar a louça. Por exemplo, adoro estar fisicamente ocupado e fazer coisas estúpidas como cortar lenha ou podar a sebe. Nesse sentido, seria bom tomarmos o exemplo da preguiça, que não se importa mesmo com nada. Fica pendurado de cabeça para baixo, comendo apenas as folhas da árvore onde se encontra e tem um tipo de pêlo particular que deixa a chuva escorrer com facilidade. A preguiça só sai da árvore para defecar.”
Tenho ideia que os animais também brincam para relaxar. Isso é verdade? “Particularmente, a actividade de animais jovens é associada à brincadeira. Os bebés humanos brincam durante toda a infância. A forma como brincam espécies diferentes muda consoante os animais serem predadores ou presas. A mãe leoa abana a sua cauda e as jovens crias saltam-lhe para cima como se fosse uma presa. As presas como a zebra e os jovens antílopes têm de estar sempre atentos e saber correr muito depressa. Brincar não é uma actividade inútil. Tem por objetivo a sobrevivência; apanhar a presa e conquistar estatuto no futuro. Mais uma vez, a selecção sexual domina tudo. Brincar é a preparação perfeita para a vida adulta.”
Então porque já não brincamos em adultos? “Os animais adultos já não brincam porque isso consome demasiada energia. Podem aplicar essa energia de formas melhores. Por exemplo, os predadores ocupam-se apenas a preparar para acasalar, a capturar presas e a procurar um parceiro. Têm que conquistar terreno, combatendo contra outros predadores machos. Isso não é brincadeira nenhuma, mas consome muita energia. Capturar presas também consome energia, por isso a maioria dos animais passa o dia deitado até ver algo a passar. A chita, por exemplo, só apanha metade daquilo que caça. Metade disso é levado por leões, hienas, cães selvagens africanos e leopardos. Por isso resta-lhes apenas um quarto. O retorno é pequeno e levam muito tempo a recuperar depois de uma corrida daquelas. O rescaldo é ainda mais intenso para os leões, que precisam de dormir depois de completar um sprint inteiro.”
Então diria que os leões são preguiçosos? “As fêmeas não, mas os machos são uns grandes preguiçosos. Esses machistas não fazem nada e deixam o trabalho todo para as fêmeas. Só se uma leoa estiver mesmo com dificuldades em levantar a presa, tal como uma girafa, um búfalo adulto ou um elefante, é que os machos vão ajudar.”
Alguma vez os papéis estiveram invertidos? “Felizmente, as relações entre os diferentes animais são completamente variadas. Os cavalos-marinhos machos têm uma bolsa reprodutora onde as fêmeas põem os ovos. Os ovos são fecundados pelo macho e depois chocados por ele. Também são os machos que cuidam das crias. Nos pássaros jaçanã, as fêmeas lutam entre elas pelo melhor território. Assim que conquistam uma parcela de terra, agarram o macho pela crista e obrigam-no a acasalar com elas. A seguir, ele é ordenado a construir um ninho onde ela põe os ovos. Ele choca os ovos, cuida das crias e, entretanto, a fêmea está ocupada mais uma vez a definir um novo território. Desta forma, ela reúne à sua volta um harém de machos. Existe um grande mal-entendido de que só os machos escolhem o seu parceiro. Os homens têm de mostrar aquilo que possuem e dão frequentemente os primeiros passos. As mulheres têm sensores extremamente subtis com os quais sentem se ele é ‘aquele’ ou não. As fêmeas também usam sinais subtis para exprimir ‘não dês nem mais um passo’ ou ‘aproxima-te’.”
Como sabem as fêmeas se têm o macho certo? “Tal como os humanos, a maioria dos mamíferos são atraídos pelo odor. Esse odor é um reflexo do sistema imunitário: o Complexo Principal de Histocompatibilidade, ou CPH. Houve uma investigação científica sobre este tema em ratos fêmeos, onde parecia que elas procuravam um macho com um CPH muito diferente do seu. Posteriormente, isso produz um efeito máximo de cruzamento de ADN. Poucos anos depois, outro estudo analisou se o mesmo se aplica às pessoas. Os homens vestiram uma t-shirt durante dois dias e duas noites sem a lavar. Estas foram colocadas num saco de plástico com código de barras. Pediu-se às mulheres que cheirassem as t-shirts e escolhessem com que homem queriam sair uma noite. Verificou-se que essas mulheres fizeram exactamente o mesmo que os ratos fêmeos. As mulheres só fizeram o oposto em caso de uso de contracepção hormonal: escolhiam sobretudo um odor corporal semelhante ao seu. Isto também explica porque razão muitas mulheres que interrompem o uso de contracepção de repente acham o cheiro dos seus maridos desagradável.”
Fala lindamente da evolução e dos animais, organiza safaris nos lugares mais incríveis do mundo e foi director do jardim zoológico de Amesterdão, o ARTIS, durante 13 anos. Com todo o seu conhecimento e experiência, o que pensa agora dos animais em cativeiro? “Quando comparo a maravilhosa série da BBC e o meu passado como colaborador do jardim zoológico, chego à conclusão que esses dois mundos são totalmente diferentes. Basta lembrar que os animais que vivem nos jardins zoológicos foram criados nesses lugares durante várias gerações. Na verdade, o fenómeno da domesticação já estava presente: portanto a capacidade cerebral de vários animais criados em jardins zoológicos é menor, mas mais flexível. Acho isso especial porque, no cativeiro, o sistema avançado de selecção sexual natural é substituído pela criação controlada. Isso exige muito destes animais; são obrigados a adaptar-se.”
Os animais dependentes de humanos ainda conseguem sobreviver no meio selvagem? “Umas dezenas de espécies de animais em cativeiro foram devolvidos à natureza quando os seus habitats voltaram a ser seguros e a caça furtiva foi abolida. Isto aconteceu, por exemplo, com o bisonte europeu. Em 1921 o último espécime foi abatido por soldados polacos famintos. Apenas alguns jardins zoológicos ainda tinham espécimes. Sob a liderança do então director da Artis, todos os bisontes europeus que viviam em jardins zoológicos foram mapeados, incluindo as relações entre eles. Com base nessa informação, foi construído um programa de criação e agora existem manadas de bisontes europeus a viver na Polónia e na Rússia, e que estão a progredir muito bem. O mesmo foi feito com vários tipos de antílopes desérticos. Os últimos espécimes foram capturados e integrados com espécimes zoológicos, o que resultou num enorme crescimento no meio selvagem. E não são os únicos. Foram reintroduzidas muitas outras espécies animais. Ironicamente, frequentemente são os animais icónicos que se extinguem. Quando são vistos na natureza, atraem turistas e a população apercebe-se da sua importância e como podem lucrar com eles. Por isso, todo o habitat do bisonte europeu, por exemplo, foi deixado em paz. Milhares de plantas, insectos, anfíbios e muitas outras espécies são protegidas desta forma, e é também por isso que é tão importante manter a atenção nessas espécies animais icónicas.”
Quase nada anda mais devagar do que a evolução. Quem o sabe é Maarten Frankenhuis (77), o antigo director do jardim zoológico de Amesterdão, veterinário e investigador. O Esporão visitou-o na sua casa rodeada de vegetação nos arredores da capital holandesa e fez-lhe a pergunta: ainda é possível o homem moderno voltar a uma vida como aquela dos nossos antepassados?
A sua resposta seguiu-se numa palestra privada de três horas sobre os humanos, os animais, a selecção natural, a reprodução e o consumo de energia. “Sobreviver na natureza não é tarefa fácil.”
"Ter algo de comestível a crescer no nosso próprio quintal é algo de profundo."
"Adoro o simples pardal que vem aqui comer migalhas todos os dias. Faz a minha mente vaguear de uma forma maravilhosa."
"Algo está sempre a acontecer no cérebro. Não podemos dizer: não penso em nada ou não faço nada."
"Brincar não é uma actividade inútil. Tem por objetivo a sobrevivência; apanhar a presa e conquistar estatuto no futuro. Mais uma vez, a selecção sexual domina tudo. Brincar é a preparação perfeita para a vida adulta."
O que pensa de as pessoas dizerem que estamos muito afastados da natureza? “Só posso concordar. Hoje em dia, muitas crianças não fazem ideia que o leite vem da vaca, quanto mais o queijo e a manteiga. Albert Heijn tem 55 produtos de aves nas prateleiras, onde apenas um é identificável como sendo uma ave. Era diferente na minha juventude; os animais mortos estavam pendurados na montra, com o sangue a escorrer. É uma pena que, actualmente, tomamos tudo o que comemos como garantido. O orgulho que sinto quando entro em casa vindo do meu jardim com uma grande colheita de endívias é quase tão grande como aquele que senti quando nasceu o meu primeiro filho. Ter algo de comestível a crescer no nosso próprio quintal é algo de profundo.”
Donde vem o seu amor pela natureza? “Quando tinha cinco anos, entrei no jardim. Tínhamos muitas árvores grandes e numa delas vi um pássaro multicolor. Pensei ‘deve ser um pássaro tropical’. Olhando para trás, era um pássaro holandês que procriava na árvore. Esse fascínio por tudo o que vive e cresce nunca desapareceu. Pouco me importa se uma coisa é ou não especial. Adoro o simples pardal que vem aqui comer migalhas todos os dias. Faz a minha mente vaguear de uma forma maravilhosa. Hoje as pessoas olham para os seus telefones quando estão aborrecidas, mas eu recuso-me a participar. Só tenho o telefone comigo quando saio sozinho. É um velho Nokia, e apenas faz chamadas e envia mensagens de texto. Às vezes finjo que estou a tirar uma fotografia para parecer que me integro.”
Então prefere observar pássaros a observar pessoas? “Adoro observar pássaros, mas estou especialmente interessado na reprodução, nas hormonas e na migração. Aquilo que acho mais interessante é a evolução e a selecção sexual. Os animais não se alimentam apenas para sobreviver, mas para sobreviver para poderem reproduzir. A maioria dos animais tem uma época específica de reprodução e, dentro dessa época, existem determinados ciclos de ovulação. Dentro de um desses ciclos, estão férteis apenas por poucos dias. Nesse sentido, os humanos são animais muito especiais. Não só porque o homem é cíclico durante o ano todo, mas também porque estamos preparados para acasalar 365 dias por ano. E também por prazer. O único animal para além de nós que faz isso é a fêmea bonobo. Na época do cio, ela apresenta-se de forma muito chocante e não há qualquer dúvida daquilo que deseja. Além disso, ela utiliza o velho princípio humano de quid pro quo. Qualquer homem entende isso, portanto o bonobo macho corre para a floresta à procura de figos, ovos ou nozes. Se regressa com algo, não entrega logo o seu tesouro porque a fêmea pode enganá-lo. Ela só recebe o prémio após o acto.”
Isso soa muito a prostituição. Parece que muitas coisas que acontecem no reino animal são espelhadas na sociedade humana. Porém, ao mesmo tempo, os humanos e os animais estão mais afastados do que nunca. Poderíamos alguma vez voltar para a natureza? “É possível, mas a sociedade não está orientada para isso. Temos de estar inscritos no registo, ter uma conta bancária e não podemos acampar em qualquer lado. Nesse sentido, estamos cheios de proibições e regulamentos. Além disso, sobreviver na natureza não é tarefa fácil. Quando eu estava a fazer o serviço militar, às vezes tinha tanta sede que apertava os úberes de uma vaca, desenterrava umas batatas e arrancava algumas cebolas do campo. Mas se não houver, então é preciso ter conhecimentos para saber o que podemos comer. A natureza tem tudo, incluindo medicamentos, mas se ingerir oleandros, buxos, teixos e rododendros, por exemplo, pode ser muito perigoso. Também temos que estar dispostos a aprender e dominar muitos ofícios se queremos sobreviver na natureza holandesa; imagine-se a colocar armadilhas, acender fogueiras e entrançar covos.”
Acha que a vida junto e dentro da natureza é relaxada? “Comparado com os agricultores e criadores de gado, os caçadores e colectores têm bastante tempo de ócio. Isto é reconhecido pelas comunidades de caçadores-colectores, como aquelas que se encontram na Papua Nova Guiné e os Índios sul-americanos. Passam muitas horas do dia a fazer sestas, a meditar e a contar histórias. Quando descobrimos que a caça-colecta leva consideravelmente menos tempo do que a agricultura, é surpreendente que as pessoas tenham passado para a agricultura. A nossa vida mudou imenso por causa disso. As comunidades tradicionais de caçadores e coletores eram bastante igualitárias. Também havia poucas diferenças entre homens e mulheres. Quando passámos para a agricultura e a criação de gado, surgiu pela primeira vez a noção de propriedade. Isso transformou tudo.”
E agora destruímo-nos a tentar manter a nossa propriedade enquanto queremos apenas desligar. Isto é difícil porque, mesmo quando estamos inactivos, o nosso cérebro continua. “É preciso lembrar que os nossos cérebros constituem 5% dos nossos corpos, mas consomem 20% da energia que colocamos nos nossos organismos. E à noite também. Por isso, algo está sempre a acontecer no cérebro. Não podemos dizer: não penso em nada ou não faço nada. Podemos dizer: não estou a ler, não estou a estudar ou não estou a lavar a louça. Por exemplo, adoro estar fisicamente ocupado e fazer coisas estúpidas como cortar lenha ou podar a sebe. Nesse sentido, seria bom tomarmos o exemplo da preguiça, que não se importa mesmo com nada. Fica pendurado de cabeça para baixo, comendo apenas as folhas da árvore onde se encontra e tem um tipo de pêlo particular que deixa a chuva escorrer com facilidade. A preguiça só sai da árvore para defecar.”
Tenho ideia que os animais também brincam para relaxar. Isso é verdade? “Particularmente, a actividade de animais jovens é associada à brincadeira. Os bebés humanos brincam durante toda a infância. A forma como brincam espécies diferentes muda consoante os animais serem predadores ou presas. A mãe leoa abana a sua cauda e as jovens crias saltam-lhe para cima como se fosse uma presa. As presas como a zebra e os jovens antílopes têm de estar sempre atentos e saber correr muito depressa. Brincar não é uma actividade inútil. Tem por objetivo a sobrevivência; apanhar a presa e conquistar estatuto no futuro. Mais uma vez, a selecção sexual domina tudo. Brincar é a preparação perfeita para a vida adulta.”
Então porque já não brincamos em adultos? “Os animais adultos já não brincam porque isso consome demasiada energia. Podem aplicar essa energia de formas melhores. Por exemplo, os predadores ocupam-se apenas a preparar para acasalar, a capturar presas e a procurar um parceiro. Têm que conquistar terreno, combatendo contra outros predadores machos. Isso não é brincadeira nenhuma, mas consome muita energia. Capturar presas também consome energia, por isso a maioria dos animais passa o dia deitado até ver algo a passar. A chita, por exemplo, só apanha metade daquilo que caça. Metade disso é levado por leões, hienas, cães selvagens africanos e leopardos. Por isso resta-lhes apenas um quarto. O retorno é pequeno e levam muito tempo a recuperar depois de uma corrida daquelas. O rescaldo é ainda mais intenso para os leões, que precisam de dormir depois de completar um sprint inteiro.”
Então diria que os leões são preguiçosos? “As fêmeas não, mas os machos são uns grandes preguiçosos. Esses machistas não fazem nada e deixam o trabalho todo para as fêmeas. Só se uma leoa estiver mesmo com dificuldades em levantar a presa, tal como uma girafa, um búfalo adulto ou um elefante, é que os machos vão ajudar.”
Alguma vez os papéis estiveram invertidos? “Felizmente, as relações entre os diferentes animais são completamente variadas. Os cavalos-marinhos machos têm uma bolsa reprodutora onde as fêmeas põem os ovos. Os ovos são fecundados pelo macho e depois chocados por ele. Também são os machos que cuidam das crias. Nos pássaros jaçanã, as fêmeas lutam entre elas pelo melhor território. Assim que conquistam uma parcela de terra, agarram o macho pela crista e obrigam-no a acasalar com elas. A seguir, ele é ordenado a construir um ninho onde ela põe os ovos. Ele choca os ovos, cuida das crias e, entretanto, a fêmea está ocupada mais uma vez a definir um novo território. Desta forma, ela reúne à sua volta um harém de machos. Existe um grande mal-entendido de que só os machos escolhem o seu parceiro. Os homens têm de mostrar aquilo que possuem e dão frequentemente os primeiros passos. As mulheres têm sensores extremamente subtis com os quais sentem se ele é ‘aquele’ ou não. As fêmeas também usam sinais subtis para exprimir ‘não dês nem mais um passo’ ou ‘aproxima-te’.”
Como sabem as fêmeas se têm o macho certo? “Tal como os humanos, a maioria dos mamíferos são atraídos pelo odor. Esse odor é um reflexo do sistema imunitário: o Complexo Principal de Histocompatibilidade, ou CPH. Houve uma investigação científica sobre este tema em ratos fêmeos, onde parecia que elas procuravam um macho com um CPH muito diferente do seu. Posteriormente, isso produz um efeito máximo de cruzamento de ADN. Poucos anos depois, outro estudo analisou se o mesmo se aplica às pessoas. Os homens vestiram uma t-shirt durante dois dias e duas noites sem a lavar. Estas foram colocadas num saco de plástico com código de barras. Pediu-se às mulheres que cheirassem as t-shirts e escolhessem com que homem queriam sair uma noite. Verificou-se que essas mulheres fizeram exactamente o mesmo que os ratos fêmeos. As mulheres só fizeram o oposto em caso de uso de contracepção hormonal: escolhiam sobretudo um odor corporal semelhante ao seu. Isto também explica porque razão muitas mulheres que interrompem o uso de contracepção de repente acham o cheiro dos seus maridos desagradável.”
Fala lindamente da evolução e dos animais, organiza safaris nos lugares mais incríveis do mundo e foi director do jardim zoológico de Amesterdão, o ARTIS, durante 13 anos. Com todo o seu conhecimento e experiência, o que pensa agora dos animais em cativeiro? “Quando comparo a maravilhosa série da BBC e o meu passado como colaborador do jardim zoológico, chego à conclusão que esses dois mundos são totalmente diferentes. Basta lembrar que os animais que vivem nos jardins zoológicos foram criados nesses lugares durante várias gerações. Na verdade, o fenómeno da domesticação já estava presente: portanto a capacidade cerebral de vários animais criados em jardins zoológicos é menor, mas mais flexível. Acho isso especial porque, no cativeiro, o sistema avançado de selecção sexual natural é substituído pela criação controlada. Isso exige muito destes animais; são obrigados a adaptar-se.”
Os animais dependentes de humanos ainda conseguem sobreviver no meio selvagem? “Umas dezenas de espécies de animais em cativeiro foram devolvidos à natureza quando os seus habitats voltaram a ser seguros e a caça furtiva foi abolida. Isto aconteceu, por exemplo, com o bisonte europeu. Em 1921 o último espécime foi abatido por soldados polacos famintos. Apenas alguns jardins zoológicos ainda tinham espécimes. Sob a liderança do então director da Artis, todos os bisontes europeus que viviam em jardins zoológicos foram mapeados, incluindo as relações entre eles. Com base nessa informação, foi construído um programa de criação e agora existem manadas de bisontes europeus a viver na Polónia e na Rússia, e que estão a progredir muito bem. O mesmo foi feito com vários tipos de antílopes desérticos. Os últimos espécimes foram capturados e integrados com espécimes zoológicos, o que resultou num enorme crescimento no meio selvagem. E não são os únicos. Foram reintroduzidas muitas outras espécies animais. Ironicamente, frequentemente são os animais icónicos que se extinguem. Quando são vistos na natureza, atraem turistas e a população apercebe-se da sua importância e como podem lucrar com eles. Por isso, todo o habitat do bisonte europeu, por exemplo, foi deixado em paz. Milhares de plantas, insectos, anfíbios e muitas outras espécies são protegidas desta forma, e é também por isso que é tão importante manter a atenção nessas espécies animais icónicas.”
Maarten Frankenhuis
Quer voltar para a natureza? Não é tão simples quanto parece.
Quase nada anda mais devagar do que a evolução. Quem o sabe é Maarten Frankenhuis (77), o antigo director do jardim zoológico de Amesterdão, veterinário e investigador. O Esporão visitou-o na sua casa rodeada de vegetação nos arredores da capital holandesa e fez-lhe a pergunta: ainda é possível o homem moderno voltar a uma vida como aquela dos nossos antepassados?
A sua resposta seguiu-se numa palestra privada de três horas sobre os humanos, os animais, a selecção natural, a reprodução e o consumo de energia. “Sobreviver na natureza não é tarefa fácil.”
"Ter algo de comestível a crescer no nosso próprio quintal é algo de profundo."
"Adoro o simples pardal que vem aqui comer migalhas todos os dias. Faz a minha mente vaguear de uma forma maravilhosa."
"Algo está sempre a acontecer no cérebro. Não podemos dizer: não penso em nada ou não faço nada."
"Brincar não é uma actividade inútil. Tem por objetivo a sobrevivência; apanhar a presa e conquistar estatuto no futuro. Mais uma vez, a selecção sexual domina tudo. Brincar é a preparação perfeita para a vida adulta."
O que pensa de as pessoas dizerem que estamos muito afastados da natureza? “Só posso concordar. Hoje em dia, muitas crianças não fazem ideia que o leite vem da vaca, quanto mais o queijo e a manteiga. Albert Heijn tem 55 produtos de aves nas prateleiras, onde apenas um é identificável como sendo uma ave. Era diferente na minha juventude; os animais mortos estavam pendurados na montra, com o sangue a escorrer. É uma pena que, actualmente, tomamos tudo o que comemos como garantido. O orgulho que sinto quando entro em casa vindo do meu jardim com uma grande colheita de endívias é quase tão grande como aquele que senti quando nasceu o meu primeiro filho. Ter algo de comestível a crescer no nosso próprio quintal é algo de profundo.”
Donde vem o seu amor pela natureza? “Quando tinha cinco anos, entrei no jardim. Tínhamos muitas árvores grandes e numa delas vi um pássaro multicolor. Pensei ‘deve ser um pássaro tropical’. Olhando para trás, era um pássaro holandês que procriava na árvore. Esse fascínio por tudo o que vive e cresce nunca desapareceu. Pouco me importa se uma coisa é ou não especial. Adoro o simples pardal que vem aqui comer migalhas todos os dias. Faz a minha mente vaguear de uma forma maravilhosa. Hoje as pessoas olham para os seus telefones quando estão aborrecidas, mas eu recuso-me a participar. Só tenho o telefone comigo quando saio sozinho. É um velho Nokia, e apenas faz chamadas e envia mensagens de texto. Às vezes finjo que estou a tirar uma fotografia para parecer que me integro.”