SKREI
Entrevista realizada dia 3 de Julho de 2019 no atelier da SKREI, no Porto.
Arquitectura líquida
A Skrei não é o típico atelier de arquitectura, logo a começar pelo nome. Poderia chamar-se Jervell & Adão da Fonseca Arquitectos mas a escolha recaiu numa tipologia de bacalhau. À medida que a nossa conversa se edificou, a várias vozes e mãos, percebeu-se que este bando à parte rejeita o pré-definido, pré-fabricado e pré-cozinhado. Defendem a arquitectura integrada, um modelo inspirado no passado, onde a cooperação entre artistas, artesãos e construtores resulta fluida e natural.
Entre os conversadores estiveram Pedro Jervell e Francisco Adão Fonseca, os dois arquitectos e amigos que fundaram a Skrei, o milanês Andrea Roveda, responsável pelo departamento de projecto, César Cardoso, o cientista de serviço que trata da investigação e prototipagem tecnológica, Pedro Taborda, engenheiro civil que tem a difícil tarefa de gerir e dar um fim às obras, Lara Jacinto, o elemento atrás da câmara fotográfica e à frente da comunicação e João Pacheco, dono dos braços armados da produção de maquetes, a alma em construção de todos os projectos. Após um dia intenso de troca de palavras, sem nunca sairmos do bairro portuense do Bonfim, ficámos com a sensação de ter aprendido mais sobre humanismo, sustentabilidade, experimentalismo, subjectividade, ativismo e galinhas, do que sobre projecto, mas o erro talvez resida na surpresa, afinal de contas tudo isto é arquitectura.
"O que nós gostamos de fazer, é deixar as coisas em aberto, não fechar, não definir as coisas." Pedro Jervell"
"Uma casa pode ser para viver, pode ser uma escultura, pode ser um objecto de passagem, pode ser um manifesto". Pedro Jervell"
"A maquete não é uma representação da realidade, é um acto de demonstração que cria empatia e um alinhamento". Francisco Adão da Fonseca"
"Há ali obviamente questões de luz, um rasgão no edifício que é um testemunho da passagem do tempo". Pedro Jervell"
"Nada é eterno, tudo é efémero e tudo tem o seu tempo". Pedro Jervell"
"Nós na construção e na arquitectura temos de conhecer o ar". Francisco Adão da Fonseca"
"Não reinventes o que não precisa de ser reinventado". Francisco Adão da Fonseca"
Foi o avô de Pedro quem trouxe o nome Jervell da Noruega para Portugal, um pormenor biográfico que deu origem à ideia de homenagear os laços salgados entre os dois países. “O bacalhau definiu a economia, a cultura, a sociedade e a alimentação do povo português durante muito tempo, basta dizer que tínhamos uma frota enorme, a frota branca.” Todos os anos por volta de Março, pesca-se e come-se skrei, um bacalhau com denominação de origem controlada que se come fresco, em plena época de desova. Curiosamente os noruegueses apanham-no à linha, como a antiga faina maior dos portugueses. “E portanto, com a concordância do meu sócio, decidimos que era interessante um nome mais abstracto, que abrisse a indefinição das coisas. Entrando dentro da filosofia do nosso trabalho, o que nós gostamos de fazer, é deixar as coisas em aberto, não fechar, não definir as coisas. A complexidade e a subjetividade são fatores que nos atraem. Acreditamos que não existe uma definição própria para seja o que for, uma casa pode ser para viver, pode ser uma escultura, um objecto de passagem, um manifesto.”
Foi o avô de Pedro quem trouxe o nome Jervell da Noruega para Portugal, um pormenor biográfico que deu origem à ideia de homenagear os laços salgados entre os dois países. “O bacalhau definiu a economia, a cultura, a sociedade e a alimentação do povo português durante muito tempo, basta dizer que tínhamos uma frota enorme, a frota branca.” Todos os anos por volta de Março, pesca-se e come-se skrei, um bacalhau com denominação de origem controlada que se come fresco, em plena época de desova. Curiosamente os noruegueses apanham-no à linha, como a antiga faina maior dos portugueses. “E portanto, com a concordância do meu sócio, decidimos que era interessante um nome mais abstracto, que abrisse a indefinição das coisas. Entrando dentro da filosofia do nosso trabalho, o que nós gostamos de fazer, é deixar as coisas em aberto, não fechar, não definir as coisas. A complexidade e a subjetividade são fatores que nos atraem. Acreditamos que não existe uma definição própria para seja o que for, uma casa pode ser para viver, pode ser uma escultura, um objecto de passagem, um manifesto.”
Por aqui a ideia e a materialização, o desenho e a construção, não são disciplinas separadas. “A maquete não é um objeto especulativo da forma, é da construção. Ali introduzimos betão, cimento, ferro… Nas nossas maquetes há muito materialidade que antecipa problemas da ordem de construção. O cliente começa logo a perceber ali qual é o impacto que vai ter a nível expressivo no resultado final, o construtor vai percebendo como é que vai resolver as questões construtivas e ajuda-nos a controlar melhor o projeto a vários níveis técnicos.”
A normalização one size fits all está nas antípodas do que a Skrei acredita. “Não há uma fórmula, não há uma metodologia, cada projecto é um desafio novo. É sempre uma reconstituição, uma avaliação de quais são os recursos, e o próprio formato vai se descobrindo à medida que vamos evoluindo no trabalho. Mas há pilares em que nós nos apoiamos. Em contextos não-urbanos entendemos que há sempre recursos e valores locais que se podem exprimir no resultado final. São materiais, conhecimento, cultura… Enfim tudo o que existe lá.”
Foi o que aconteceu na Adega dos Lagares? “Foi. O que vocês veem aqui à nossa volta é fruto dessa pesquisa maioritariamente materialística, mas há muito conhecimento imaterial na sociedade, o conhecimento de como se fazem as coisas, aí as pessoas são as peças mais importantes.” As entrevistas com Pedro, e depois com Lara. aconteceram numa sala onde forrada a garrafas com vários tipos de terra, um gabinete de curiosidades que esperaríamos encontrar na cave de um alquimista, mas que revela o modus operandi da Skrei. E assim passamos a palavra a Lara Jacinto: “O relicário resultou de uma viagem do Pedro e do Francisco por Portugal, em que fizeram uma recolha de amostras de várias solos e criaram um mostruário de características do território português. Este trabalho é um ato simbólico muito interessante, que mostra bem a forma como a Skrei atua, essa procura e entendimento do sítio onde se trabalha, em vez de importar processos pré-definidos. É uma leitura da realidade e depois uma adaptação a essa realidade.”
Aquilo que parecia uma natureza morta, parada no tempo, é afinal um mostruário de possibilidades, em constante evolução. “Enquanto fotógrafa há uma caraterística que me impressiona muito, é o facto de ser uma coisa viva, é um acontecimento constante, há aqui garrafas com anos e a amostra continua a desenvolver-se.”
Impermeabilização com cera de abelha, reboco de bosta de burro, cal de ostra, adobe de sargaço, tijolos de cânhamo e paredes em terra poderiam ser itens do acervo de um museu de história natural, mas são parte integrante dos cadernos de encargos das obras da Skrei, o pináculo do iceberg de uma “expedição à descoberta dos materiais que foram ficando extintos do nosso reportório, mas também da nossa condição, humana e biológica. O que me inspira e move bastante.” – como diz Francisco Adão da Fonseca.
Pedro continua: “Na Skrei, mas do que lutar contra o tempo, a equipa luta pelo tempo de pesquisa de materiais e técnicas de construção locais, luta pela formação de equipas que estão a fazer algo de novo e luta pela legalidade de algo que não está previsto.” E é fácil convencer os novos clientes quanto à vantagens do vosso método? “A forma como nós os convencemos a esperar é mostrando técnicas e soluções construtivas que melhoram muito, muito mesmo, o habitat e o espaço físico onde as pessoas vivem. Na Adega do Lagares havia muito poucas referências e pessoas ligadas à taipa. Começámos por uma pesquisa exaustiva em livros e zonas do país em que se fazia.”
Infelizmente as pessoas ligadas à construção em terra estavam na maioria reformadas ou desinteressadas e acabou por ser um arquitecto amigo, Henrique Schrek, a dar uma mão. “No Esporão ele entrou como consultor e formou construtores que tinham perdido a técnica da geração anterior. Foi muito enriquecedor porque agora eles estão a tornar-se especialistas. O conhecimento vai ganhando expressão e afirmação. Claro que há sempre aquelas questões muito chatas dos regulamentos da construção que ainda não preveem este tipo de técnicas e soluções.”
Sobre o mesmo tema Francisco acrescentou: “As certificações das nossas obras ou materiais são sempre no fim da linha. Muito antes de certificar é preciso dar o exemplo, construir, fazer. Os trolhas fazerem e entusiasmarem-se com o que fazem. Depois assamos um leitão, damos uma festa e de repente tudo aquilo que era um sonho torna-se realidade. E todos são de certa forma autores dessa realidade partilhada. É muito motivante ver as pessoas a mudar com passos pequeninos.”
O exemplo é fundamental na demanda pelas soluções. “Quando falamos com construtores, arquitetos, colegas ou clientes, no momento em que presenciam as paredes a serem construídas, as alquimias que fazemos lá em baixo com as ceras, há uma confiança que aflora. A maquete não é uma representação da realidade, é um ato de demonstração que cria empatia e um alinhamento.”
Não é apenas a matéria-prima local que entra nos projectos da Skrei, no caso de uma herdade, são também as sobras, como conta Pedro: “Os excedentes de uma atividade são sempre um problema com o qual é preciso lidar. Nós somos muito chatos, vamos lá e perguntamos por tudo e as pessoas ficam ‘mas porque é que vocês querem saber de borras?’. O Miguel Jorge está a fazer um trabalho espetacular no Esporão porque está a promover a autossuficiência de todo o organismo e atividade com os próprios recursos e excedentes que eles criam. É uma coisa fantástica e nós articulamo-nos muito com os trabalhos que fazemos lá.”
O “relicário” saído do Esporão incluiu recolhas de mosto, engaço, lamas da ETAR e massas do lagar de azeite que têm sido testados para fazer rebocos de construções futuras. Quanto à Adega dos Lagares, “a estrutura é em taipa, os lagares são em mármore de Vila Viçosa (a 50 km da Herdade do Esporão), as aduelas das pipas, que normalmente são revendidas ou queimadas, foram usadas para fazer um teto com uma dupla função – estética e acústica – e no final, a cal, obviamente. Depois há também o betão que surge das caves, para afirmar a continuidade do espaço, assumindo que a adega não começa ali, mas que se estende em termos de funcionamento e infraestrutura para o subsolo. Este tipo de arquitetura mais vernacular, com materiais de baixo processamento, em que a mão da pessoa está muito mais envolvida, acaba por dar origem a espaços mais vivos. É uma arquitectura viva que respira.”
Para Pedro a criação de um espaço mais vivo e dinâmico é a linha condutora do edifício, chegando ao ponto de destacar uma parede para deixar entrar ar, tempo e luz, mas “obviamente sem ser exagerado, porque uma adega precisa de uma temperatura o mais estável possível, um ambiente quase de igreja”. Sabíamos da existência de vinhos desenhados para envelhecer na garrafa, agora conhecemos a arquitectura desenhada para tirar partido das rugas de expressão da matéria. “É de facto o tempo a passar nesse rasgo que ativa a vivacidade do edifício. Assim como o vinho, vai tendo as diferentes transformações, ele próprio sendo uma coisa viva, nós também gostávamos que isso passasse para a arquitetura.”
Há outra vantagem para a escolha de materiais mais terra-a-terra: “a porosidade de materiais da terra tem resultados fantásticos a nível de regulamento térmico. Os edifícios deixam que a humidade entre dentro das paredes e depois seja libertada lentamente. Isto entre a noite e o dia, de verão para o inverno.”
Não é de estranhar o nascimento de boas relações em adegas, exactamente o que aconteceu com a Skrei e o Esporão. “A abordagem depois estendeu-se para toda a herdade. Foi fantástico analisá-la dessa maneira. Voltando à filosofia do nosso escritório, o corpo humano é a base da nossa atividade, em todas as escalas. O que é que define a escala? É o tempo e o espaço, sempre relativo ao ser humano. Não vou falar agora de física quântica, mas olhando para o corpo humano como uma paisagem (ou uma herdade) há vários órgãos que dependem uns dos outros. Se o fígado pára de trabalhar, os outros vão a seguir e temos problemas. Numa empresa com uma atividade agrícola, que por si só lida com o dinamismo da natureza, introduzimos esta ideia de organismo em que cada órgão tem sua complexidade e importância, para conseguirmos perceber quais as prioridade para melhorar todo o funcionamento.”
Numa herdade cujos limites geográficos foram estabelecidos em 1267, sem que se tenham alterado consideravelmente até hoje, já para não falar das diferentes vidas que teve ao longo de cerca de 9 séculos de história, é natural que sejam necessárias algumas intervenções cirúrgicas. “Na maior parte das vezes estamos a retirar coisas que existiam e não serviam para nada. Acho que estamos a conseguir chegar lá. Este projeto até surgiu com um briefing de fazer um hotel em que nós o identificámos como um órgão que se calhar estava a mais e não era fundamental para saúde do organismo.”
Quanto à construção desse apêndice, Pedro afirma estar fora das suas mãos, mas todos concordam que “aquele hotel para aquele propósito não era o ideal.” Quanto ao futuro, ainda se está em fase de especulação e o organismo dará novidades no tempo certo. Esta analogia do organismo é partilhada em várias frentes por Pedro e Francisco, com quem falámos separadamente. “Eu e o Pedro sempre olhámos para esta empresa como um movimento, um organismo que vai assumindo uma dada personalidade e maturidade. Nunca olhámos para nós e para aquilo que fazemos como uma negócio ou uma empresa. O que fazemos é um exercício das nossas motivações mais profundas, na medida do possível, porque obviamente o dinheiro tem um papel nisso.”
Como vamos ver no final deste aglomerado de entrevistas, tanto Francisco como Pedro, são ativistas idealistas que por acaso escolheram a arquitectura para defender ideias e ideais. Francisco explica o conceito: “Acho que o embate com o estabelecido é uma constante na história, é uma constante na vida das pessoas inconformadas (no bom sentido), pessoas que sentem responsabilidade por um bem comum. Na natureza vê-se isso, espécies que têm a função de abrir trilhos alternativos. Eu vejo isso nas minhas galinhas, animais jurássicos com quem aprendo muito.”
Chegou a altura de Pedro nos explicar a origem do Objecto Circular Não Identificado que os visitantes da sala de provas do Esporão não conseguem esquecer. “Eu aí comecei a esticar um bocadinho a corda, porque tentei promover um espaço que não tivesse identidade. É muito difícil hoje em dia, dentro de uma empresa, as pessoas aceitarem isso. O normal é dizerem ‘eu quero uma sala de reuniões. Eu quero uma sala de provas. Eu quero uns escritórios.’ E eu vim dizer que queria uma espaço sem função. Ou dito de outra maneira, com várias funções. O espaço que tínhamos era tão interessante em si só, que já apetecia visitá-lo. Como tirar partido disso?”
Era necessário criar uma sala de provas, uma garrafeira da empresa, uma garrafeira para o enoturismo e uma local de armazenamento permanente. “Estamos a falar de um sitio, onde passam turistas, trabalhadores e porta-paletes. Portanto fazer conviver tudo no mesmo espaço é um desafio. Foi aí que surgiu essa mesa que não é uma mesa, é uma coisa meia esquisita, uma escultura, uma peça que está ali para perturbar um bocadinho as pessoas, por não conseguirem perceber o que é, mas de repente metes uns bancos, acende-se uma luz, pões uma garrafa em cima da mesa e rapidamente sabes que é uma mesa de provas.”
A mesa é exactamente igual ao candeeiro que está por cima, e “cada objecto daqueles pesa uma tonelada. Essa gravidade, essa tensão, promove a ambiguidade”.
A mesa-candeeiro da ambiguidade foi a estreia de João Pacheco, o responsável pela produção de maquetes e projectos artísticos da Skrei. Sempre que ao longo do dia ouvimos a expressão “lá em baixo” é uma referência ao local onde o encontramos, na oficina que fica na cave do escritório. “Foi a primeira maquete que fiz para a Skrei, tudo em folha de madeira. Foram coladas uma a uma dentro de um molde e ficou igual ao final. São 4 peças iguais encaixadas (candeeiro e mesa) que demorei uma semana e meia a fazer, mas lá está, depois de feito, o arquitecto só tem de se sentir realizado.”
E o João? “Eu fico realizado assim que acabo a maquete, por acaso foi das peças que eu gostei mais de fazer. E depois o resultado final… Como é que quatro metros de mesa conseguem manter-se só com um pézinho? Esse trabalho foi o arranque para uma nova época da minha vida.” Quando o convidaram para ser o braço direito (e esquerdo) do atelier, João fazia barcos de madeira como hobby, hoje está 100% em velocidade de cruzeiro na sua função.
Andrea Roveda, o responsável pelo departamento de projecto também salienta a importância do trabalho do João. “O material está muito presente desde o inicio. Muitas vezes o projeto é desenvolvido lá em baixo e aplica-se o material que se pretende utilizar, o que ajuda a ter a percepção final. As maquetes aqui são numa escala muito maior que o costume, são 1:20, 1:05 e às vezes protótipos à escala real.”
De volta a Pedro, quisemos saber se nos 10 anos de existência da Skrei têm conseguido transmitir aos clientes a importância de saber esperar por todo o processo de investigação. “Já se zangaram connosco, outros ficaram muito contentes, mas uma coisa completamente inerente à nossa atividade e à construção das nossas opções é a manutenção e o tempo. Nós damos muito o exemplo, mais uma vez, do corpo humano. O corpo humano precisa de manutenção. Tudo precisa de uma alimentação. Enquanto for vivo e físico está tudo em aberto. Ainda há muita coisa por descobrir naquilo que é o conforto de um espaço para habitar. Os romanos, gregos, persas e egípcios tinham casas com poucas janelas, viviam com um conhecimento de construção, climatologia e conforto que nós estamos ainda muito longe de conseguir atingir.”
Pedro reforça que não só está tudo escrito como muitos desses exemplos ainda estão de pé. “Vamos lá ver e há pavimentos aquecidos com linhas de água com fumo e calor; sistemas de ventilação passivos que têm a ver com massa construtiva. Isto tudo vai contra a economia em que vivemos. Nada é eterno, tudo é efémero e tudo tem o seu tempo. Ou conseguimos lidar com a transformação das coisas ou então deixamos de ser tão vivos. As nossas mães ventilavam as casas todos os dias, porque estavam em casa. Nós não estamos e as casas fechadas levam à saturação do ar, acumulação de bactérias, mal estar e mau ambiente.”
Neste momento somos interrompidos pela campainha, um amigo viticultor de Foz Côa veio à Skrei, deixar umas garrafas de vinho e aí percebemos que este estamos num atelier-relicário-oficina-armazém-de-vinho. “Antigamente vivia-se e dependia-se mais da casa, a casa era uma extensão do corpo, havia as lojas dos animais, o sequeiro, as eiras… o organismo habitacional estendia-se pela paisagem e tudo era constituinte do organismo: as pessoas, os animais, os utensílios, as ferramentas, era o contrário da economia atual em que nós dependemos de tudo menos de nós próprios.”
O elogio do passado pode parecer saudosismo, mas é puro espírito prático, como Francisco nos explica. “Os holandeses dizem: ‘faz as coisas com normalidade que isso já é loucura suficiente’, no sentido de ‘não reinventes o que não precisa de ser reinventado’. Se olharmos para trás e tentarmos perceber como é que se faziam as coisas, que alternativas é que havia por exemplo aos plásticos para fazer a impermeabilização dos edifícios? A importância do tecido encerado é uma coisa que nós perdemos completamente. Esta coisa de olhar com atenção para o receituário tradicional e tentar esmiuçar para perceber como as coisas eram feitas, acho que é uma coisa menos poética e mais pragmática. Temos ali um repositório gigantesco de criatividade.”
Francisco dá-nos uma autêntica aula de história, ao referir algo que parece esquecido nos dias de hoje: “a construção civil e a arquitetura tiveram um apogeu antes do início dos hidrocarbonetos (derivados de petróleo) portanto nós temos uma tradição de construção que vem desde o Egito, desde a última Idade do Gelo, 11 mil anos antes de Cristo.” Até que chegámos aqui, à lógica construtiva fruto da industrialização do cimento e dos petroquímicos hidrocarbonetos. “Este império é uma coisa que está prestes a terminar, porque não é sustentável. Como é que é possível não se olhar para há 100 anos e ir buscar esse repositório? É uma coisa irracional. Temos de fazer isso da forma mais intensa possível porque depois o conhecimento vai desaparecendo.”
Aqui a conversa passa para o maravilhoso domínio da natureza, reino animalia, classe insecta, mais concretamente “a descoberta da própolis (uma cera resinosa que as abelhas produzem para matar tudo o que é fungos e bactérias e selar a colmeia e até para proteger dos fogos). É um material compatível com tudo: argamassas, madeiras, vernizes, e que tem características incríveis, por alguma coisa o Stradivarius usava própolis nas suas receitas de violinos… A mesma coisa com a cera de abelha, um impermeabilizante que respira. A chuva não entra, mas a humidade, o vapor de água sai, o que para a construção é vital. As pessoas esquecem que o ar é um fluído, como a água, que está carregado de vapor.”
Quando um atelier possui colmeias e pensa assim, a forma de lidar com os materiais e com a construção muda por completo, algo que poderia ser definido pela frase da arquitecta e professora do M.I.T. Neri Oxman: ‘eu só tenho um cliente: a natureza.’ “Imagina que somos engenheiros de oceanários e aquários, temos que perceber alguma coisa sobre a natureza da água. Na construção e na arquitetura temos de conhecer o ar. Nós estamos banhados em ar, navegamos o ar que é transporte de vapor de água. Este talvez seja o fator mais fundamental na nossa atividade. Costumamos brincar que os edifícios são feitos são feitos 99,9 % de ar e o resto são materiais rígidos.”
Francisco e a sua calma assertiva lembra-nos Bruce Lee, quando meditou sobre a maleabilidade da água: ‘Se deitas água num bule de chá, ela torna-se o bule de chá. A água pode fluir ou pode partir. Sê água, meu amigo.’ “Levar a vida devagar não é lentidão, é reconhecer a importância das coisas. É dar importância a cada passo, a cada pessoa, a cada desafio que temos. Isto de levar a vida muito depressa é um desequilíbrio nas nossas prioridades. De repente todos os momentos têm de ser aproveitados e esgotados ao máximo, depois gera-se um vazio. Com o frenesim de se dar o máximo de importância a tudo, perde-se a essência e não se dá a atenção que se devia dar.”
Neste ponto da conversa falámos da permanência impalpável das coisas, ou melhor: sobre o antes e depois na arquitectura. “Quando as pessoas olham para um edifício estático que existe há 200 anos, 10 mil anos, esse é o caráter de permanência que é reconhecido, mas nós olhamos para o impacto invisível, impalpável, social, cultural e natural que esta atividade tem. É uma dimensão avassaladora que ainda está por ser discutida e interpretada. Quando isto tudo converge na nossa atividade presente, dá-nos aquele estado de permanência que não tem tempo.”
O arquitecto-ativista continua a sua explicação, referindo que o património de uma construção não é necessariamente o que se constrói, dando o exemplo de um edifício em tijolos de cânhamo, seguramente o primeiro em Portugal. “Ao optarmos por construir em cânhamo, temos consciência que estão ali oito a dez hectares de território que foi rejuvenescido, porque o cânhamo é uma planta que faz essa recapacitação do território da paisagem. Traz azoto, muito carbono, permeabilização das raízes e do solo. Falar em construção em cânhamo é falar de água e de biodiversidade, de desenhar uma rede de relações e de valores importantes e positivas. Este é o caráter de permanência da construção civil. Para a produção de uma tonelada de betão armado estamos a emitir uma tonelada de dióxido de carbono para a atmosfera. Esse dióxido de carbono é a permanência da arquitetura e vai muito para além daquilo que nós vemos edificado. Então eu acho que trabalhar o antes e o depois da obra tem a ver com a consciencialização das ligações que se promovem e que se apagam na feitura de um edifício. Ligações essas que depois perduram e muitas que vêm de trás que são reforçadas ou são remodeladas.”
Para saber mais sobre tijolos em cânhamo, blocos de terra compactados (btc) e ideias loucas falámos com o engenheiro de materiais César Cardoso, um dos experimentalistas de serviço da Skrei. “Eu venho da área científica. Enquanto engenheiro civil já trabalhei na universidade, dei aulas e estive em investigação. Para mim é muito importante colocarmos logo em cima da balança três coisas: a parte económica, a sustentabilidade e a exequibilidade da coisa. Só depois desses três pilares estarem muito bem trabalhados é que avançamos.”
Com os blocos de terra usados no Esporão, César teve mais de dois meses a testar cerca de 15 misturas de terra com estabilizantes à base de cal, até que uma shortlist seguiu para testes na Universidade do Minho e só posteriormente se chegou a uma solução final que cumpria todos os requisitos. “Aquilo que diz respeito à garantia da qualidade do produto recorremos a serviços externos.”
Como é que começa cada processo de investigação para novos materiais? “Começa com uma ideia que, à partida, pode parecer louca. Nesse momento faço uma filtragem à loucura da ideia para perceber se aquele material, com aquelas propriedades específicas, poderá dar para isto ou para aquilo. A partir daí limitamos. Normalmente as ideias vêm do Pedro ou do Francisco, umas vezes com vertente tecnológica e outras mais artística. Na Skrei estamos sempre com desafios novos. Desenvolvemos uma tecnologia e podemos escolher massificar, mas não, vamos atrás de uma tecnologia nova com o mesmo material e isso é…” …um pouco louco? “(risos) De certo modo, sim.” Esta é uma das características fundamentais deste bando à parte, todas as soluções da Skrei são open source, o que aprendem no terreno não é para vsender, é para partilhar.
Ao fim da tarde Pedro Taborda chegou ao atelier para a última conversa do dia. “Sou engenheiro civil e faço a gestão e a coordenação das obras.” Claro que uma construção Skrei tem desafios extra. “A maior parte da construção civil segue regras standard, as obras da Skrei fogem totalmente a esse “standartismo”. A grande dificuldade é gerir fornecedores e equipas da obra que primeiro têm de experienciar os materiais e experimentar as nossas soluções construtivas. Eles nunca conseguem perceber bem quais são os rendimentos de trabalho que têm. As equipes de obra estão sempre focadas no tempo que se traduz em dinheiro, no fundo é o ganha-pão deles.”
A função do Pedro é aquela mais esmagada pelos tempos e pelo desconhecido, portanto torna-se quase obrigatório trabalhar com equipas que lidem bem com o inesperado. “Não é qualquer empreiteiro que tem estofo para trabalhar connosco e com a capacidade e dinâmica que nós às vezes precisamos nas nossas obras. Isso é muito verdade e portanto acaba por ser uma relação muito intuitiva. Nós quase que reconhecemos que estamos bem para trabalhar uns com os outros. O ideal numa obra seria fazê-la depois de estar feita! Essa seria a obra em que tudo corria lindamente. Mas até aí uma obra Skrei seria diferente. Se voltássemos a repeti-la não seria a mesma obra. Esse é um ponto interessante desta empresa.”
O perfeito, ao nível da construção seria ter a grua mais orgânica de sempre. “Em relação às maquetes que faz. o João, com os seus dois braços, é uma grua enorme. Na obra também temos as gruas, mas infelizmente não são como ele. Se tivéssemos um João gigante para fazer as nossas obras, então era do caraças (risos).”
Em termos estéticos ‘perfeição’ não é o que a Skrei quer na fotografia, quem o diz é Lara. “Em arquitectura há muito a expectativa que as imagens ‘corrijam’ a realidade. Na Skrei não há essa preocupação. Há uma aceitação total daquilo que não são defeitos, são características que existem nos espaços, porque faz sentido que assim seja. Portanto não mudamos algo que esteticamente pode ser condenado, como não ser totalmente branco ou totalmente recto.”
E assim terminamos esta súmula sumarenta de várias horas de conversa à volta de uma arquitectura em estado líquido, debruçados sobre soluções tão em aberto que “muitas vezes é o serralheiro (Augusto) que apresenta a solução mais apta” como conta Andrea. Na Skrei não há intervenções estanques, delimitadas pela especialidade, o trabalho é orgânico e os projectos respiram através das escolhas e dos materiais que assumem as memórias das mãos que construíram, constroem e continuarão a construir, numa continuidade que respeita o lugar e o tempo das coisas.
A Skrei não é o típico atelier de arquitectura, logo a começar pelo nome. Poderia chamar-se Jervell & Adão da Fonseca Arquitectos mas a escolha recaiu numa tipologia de bacalhau. À medida que a nossa conversa se edificou, a várias vozes e mãos, percebeu-se que este bando à parte rejeita o pré-definido, pré-fabricado e pré-cozinhado. Defendem a arquitectura integrada, um modelo inspirado no passado, onde a cooperação entre artistas, artesãos e construtores resulta fluida e natural.
Entre os conversadores estiveram Pedro Jervell e Francisco Adão Fonseca, os dois arquitectos e amigos que fundaram a Skrei, o milanês Andrea Roveda, responsável pelo departamento de projecto, César Cardoso, o cientista de serviço que trata da investigação e prototipagem tecnológica, Pedro Taborda, engenheiro civil que tem a difícil tarefa de gerir e dar um fim às obras, Lara Jacinto, o elemento atrás da câmara fotográfica e à frente da comunicação e João Pacheco, dono dos braços armados da produção de maquetes, a alma em construção de todos os projectos. Após um dia intenso de troca de palavras, sem nunca sairmos do bairro portuense do Bonfim, ficámos com a sensação de ter aprendido mais sobre humanismo, sustentabilidade, experimentalismo, subjectividade, ativismo e galinhas, do que sobre projecto, mas o erro talvez resida na surpresa, afinal de contas tudo isto é arquitectura.
"O que nós gostamos de fazer, é deixar as coisas em aberto, não fechar, não definir as coisas." Pedro Jervell"
"Uma casa pode ser para viver, pode ser uma escultura, pode ser um objecto de passagem, pode ser um manifesto". Pedro Jervell"
"A maquete não é uma representação da realidade, é um acto de demonstração que cria empatia e um alinhamento". Francisco Adão da Fonseca"
"Há ali obviamente questões de luz, um rasgão no edifício que é um testemunho da passagem do tempo". Pedro Jervell"
"Nada é eterno, tudo é efémero e tudo tem o seu tempo". Pedro Jervell"
"Nós na construção e na arquitectura temos de conhecer o ar". Francisco Adão da Fonseca"
"Não reinventes o que não precisa de ser reinventado". Francisco Adão da Fonseca"
Foi o avô de Pedro quem trouxe o nome Jervell da Noruega para Portugal, um pormenor biográfico que deu origem à ideia de homenagear os laços salgados entre os dois países. “O bacalhau definiu a economia, a cultura, a sociedade e a alimentação do povo português durante muito tempo, basta dizer que tínhamos uma frota enorme, a frota branca.” Todos os anos por volta de Março, pesca-se e come-se skrei, um bacalhau com denominação de origem controlada que se come fresco, em plena época de desova. Curiosamente os noruegueses apanham-no à linha, como a antiga faina maior dos portugueses. “E portanto, com a concordância do meu sócio, decidimos que era interessante um nome mais abstracto, que abrisse a indefinição das coisas. Entrando dentro da filosofia do nosso trabalho, o que nós gostamos de fazer, é deixar as coisas em aberto, não fechar, não definir as coisas. A complexidade e a subjetividade são fatores que nos atraem. Acreditamos que não existe uma definição própria para seja o que for, uma casa pode ser para viver, pode ser uma escultura, um objecto de passagem, um manifesto.”
Foi o avô de Pedro quem trouxe o nome Jervell da Noruega para Portugal, um pormenor biográfico que deu origem à ideia de homenagear os laços salgados entre os dois países. “O bacalhau definiu a economia, a cultura, a sociedade e a alimentação do povo português durante muito tempo, basta dizer que tínhamos uma frota enorme, a frota branca.” Todos os anos por volta de Março, pesca-se e come-se skrei, um bacalhau com denominação de origem controlada que se come fresco, em plena época de desova. Curiosamente os noruegueses apanham-no à linha, como a antiga faina maior dos portugueses. “E portanto, com a concordância do meu sócio, decidimos que era interessante um nome mais abstracto, que abrisse a indefinição das coisas. Entrando dentro da filosofia do nosso trabalho, o que nós gostamos de fazer, é deixar as coisas em aberto, não fechar, não definir as coisas. A complexidade e a subjetividade são fatores que nos atraem. Acreditamos que não existe uma definição própria para seja o que for, uma casa pode ser para viver, pode ser uma escultura, um objecto de passagem, um manifesto.”
Por aqui a ideia e a materialização, o desenho e a construção, não são disciplinas separadas. “A maquete não é um objeto especulativo da forma, é da construção. Ali introduzimos betão, cimento, ferro… Nas nossas maquetes há muito materialidade que antecipa problemas da ordem de construção. O cliente começa logo a perceber ali qual é o impacto que vai ter a nível expressivo no resultado final, o construtor vai percebendo como é que vai resolver as questões construtivas e ajuda-nos a controlar melhor o projeto a vários níveis técnicos.”
A normalização one size fits all está nas antípodas do que a Skrei acredita. “Não há uma fórmula, não há uma metodologia, cada projecto é um desafio novo. É sempre uma reconstituição, uma avaliação de quais são os recursos, e o próprio formato vai se descobrindo à medida que vamos evoluindo no trabalho. Mas há pilares em que nós nos apoiamos. Em contextos não-urbanos entendemos que há sempre recursos e valores locais que se podem exprimir no resultado final. São materiais, conhecimento, cultura… Enfim tudo o que existe lá.”
Foi o que aconteceu na Adega dos Lagares? “Foi. O que vocês veem aqui à nossa volta é fruto dessa pesquisa maioritariamente materialística, mas há muito conhecimento imaterial na sociedade, o conhecimento de como se fazem as coisas, aí as pessoas são as peças mais importantes.” As entrevistas com Pedro, e depois com Lara. aconteceram numa sala onde forrada a garrafas com vários tipos de terra, um gabinete de curiosidades que esperaríamos encontrar na cave de um alquimista, mas que revela o modus operandi da Skrei. E assim passamos a palavra a Lara Jacinto: “O relicário resultou de uma viagem do Pedro e do Francisco por Portugal, em que fizeram uma recolha de amostras de várias solos e criaram um mostruário de características do território português. Este trabalho é um ato simbólico muito interessante, que mostra bem a forma como a Skrei atua, essa procura e entendimento do sítio onde se trabalha, em vez de importar processos pré-definidos. É uma leitura da realidade e depois uma adaptação a essa realidade.”
Aquilo que parecia uma natureza morta, parada no tempo, é afinal um mostruário de possibilidades, em constante evolução. “Enquanto fotógrafa há uma caraterística que me impressiona muito, é o facto de ser uma coisa viva, é um acontecimento constante, há aqui garrafas com anos e a amostra continua a desenvolver-se.”
Impermeabilização com cera de abelha, reboco de bosta de burro, cal de ostra, adobe de sargaço, tijolos de cânhamo e paredes em terra poderiam ser itens do acervo de um museu de história natural, mas são parte integrante dos cadernos de encargos das obras da Skrei, o pináculo do iceberg de uma “expedição à descoberta dos materiais que foram ficando extintos do nosso reportório, mas também da nossa condição, humana e biológica. O que me inspira e move bastante.” – como diz Francisco Adão da Fonseca.
Pedro continua: “Na Skrei, mas do que lutar contra o tempo, a equipa luta pelo tempo de pesquisa de materiais e técnicas de construção locais, luta pela formação de equipas que estão a fazer algo de novo e luta pela legalidade de algo que não está previsto.” E é fácil convencer os novos clientes quanto à vantagens do vosso método? “A forma como nós os convencemos a esperar é mostrando técnicas e soluções construtivas que melhoram muito, muito mesmo, o habitat e o espaço físico onde as pessoas vivem. Na Adega do Lagares havia muito poucas referências e pessoas ligadas à taipa. Começámos por uma pesquisa exaustiva em livros e zonas do país em que se fazia.”
Infelizmente as pessoas ligadas à construção em terra estavam na maioria reformadas ou desinteressadas e acabou por ser um arquitecto amigo, Henrique Schrek, a dar uma mão. “No Esporão ele entrou como consultor e formou construtores que tinham perdido a técnica da geração anterior. Foi muito enriquecedor porque agora eles estão a tornar-se especialistas. O conhecimento vai ganhando expressão e afirmação. Claro que há sempre aquelas questões muito chatas dos regulamentos da construção que ainda não preveem este tipo de técnicas e soluções.”
Sobre o mesmo tema Francisco acrescentou: “As certificações das nossas obras ou materiais são sempre no fim da linha. Muito antes de certificar é preciso dar o exemplo, construir, fazer. Os trolhas fazerem e entusiasmarem-se com o que fazem. Depois assamos um leitão, damos uma festa e de repente tudo aquilo que era um sonho torna-se realidade. E todos são de certa forma autores dessa realidade partilhada. É muito motivante ver as pessoas a mudar com passos pequeninos.”
O exemplo é fundamental na demanda pelas soluções. “Quando falamos com construtores, arquitetos, colegas ou clientes, no momento em que presenciam as paredes a serem construídas, as alquimias que fazemos lá em baixo com as ceras, há uma confiança que aflora. A maquete não é uma representação da realidade, é um ato de demonstração que cria empatia e um alinhamento.”
Não é apenas a matéria-prima local que entra nos projectos da Skrei, no caso de uma herdade, são também as sobras, como conta Pedro: “Os excedentes de uma atividade são sempre um problema com o qual é preciso lidar. Nós somos muito chatos, vamos lá e perguntamos por tudo e as pessoas ficam ‘mas porque é que vocês querem saber de borras?’. O Miguel Jorge está a fazer um trabalho espetacular no Esporão porque está a promover a autossuficiência de todo o organismo e atividade com os próprios recursos e excedentes que eles criam. É uma coisa fantástica e nós articulamo-nos muito com os trabalhos que fazemos lá.”
O “relicário” saído do Esporão incluiu recolhas de mosto, engaço, lamas da ETAR e massas do lagar de azeite que têm sido testados para fazer rebocos de construções futuras. Quanto à Adega dos Lagares, “a estrutura é em taipa, os lagares são em mármore de Vila Viçosa (a 50 km da Herdade do Esporão), as aduelas das pipas, que normalmente são revendidas ou queimadas, foram usadas para fazer um teto com uma dupla função – estética e acústica – e no final, a cal, obviamente. Depois há também o betão que surge das caves, para afirmar a continuidade do espaço, assumindo que a adega não começa ali, mas que se estende em termos de funcionamento e infraestrutura para o subsolo. Este tipo de arquitetura mais vernacular, com materiais de baixo processamento, em que a mão da pessoa está muito mais envolvida, acaba por dar origem a espaços mais vivos. É uma arquitectura viva que respira.”
Para Pedro a criação de um espaço mais vivo e dinâmico é a linha condutora do edifício, chegando ao ponto de destacar uma parede para deixar entrar ar, tempo e luz, mas “obviamente sem ser exagerado, porque uma adega precisa de uma temperatura o mais estável possível, um ambiente quase de igreja”. Sabíamos da existência de vinhos desenhados para envelhecer na garrafa, agora conhecemos a arquitectura desenhada para tirar partido das rugas de expressão da matéria. “É de facto o tempo a passar nesse rasgo que ativa a vivacidade do edifício. Assim como o vinho, vai tendo as diferentes transformações, ele próprio sendo uma coisa viva, nós também gostávamos que isso passasse para a arquitetura.”
Há outra vantagem para a escolha de materiais mais terra-a-terra: “a porosidade de materiais da terra tem resultados fantásticos a nível de regulamento térmico. Os edifícios deixam que a humidade entre dentro das paredes e depois seja libertada lentamente. Isto entre a noite e o dia, de verão para o inverno.”
Não é de estranhar o nascimento de boas relações em adegas, exactamente o que aconteceu com a Skrei e o Esporão. “A abordagem depois estendeu-se para toda a herdade. Foi fantástico analisá-la dessa maneira. Voltando à filosofia do nosso escritório, o corpo humano é a base da nossa atividade, em todas as escalas. O que é que define a escala? É o tempo e o espaço, sempre relativo ao ser humano. Não vou falar agora de física quântica, mas olhando para o corpo humano como uma paisagem (ou uma herdade) há vários órgãos que dependem uns dos outros. Se o fígado pára de trabalhar, os outros vão a seguir e temos problemas. Numa empresa com uma atividade agrícola, que por si só lida com o dinamismo da natureza, introduzimos esta ideia de organismo em que cada órgão tem sua complexidade e importância, para conseguirmos perceber quais as prioridade para melhorar todo o funcionamento.”
Numa herdade cujos limites geográficos foram estabelecidos em 1267, sem que se tenham alterado consideravelmente até hoje, já para não falar das diferentes vidas que teve ao longo de cerca de 9 séculos de história, é natural que sejam necessárias algumas intervenções cirúrgicas. “Na maior parte das vezes estamos a retirar coisas que existiam e não serviam para nada. Acho que estamos a conseguir chegar lá. Este projeto até surgiu com um briefing de fazer um hotel em que nós o identificámos como um órgão que se calhar estava a mais e não era fundamental para saúde do organismo.”
Quanto à construção desse apêndice, Pedro afirma estar fora das suas mãos, mas todos concordam que “aquele hotel para aquele propósito não era o ideal.” Quanto ao futuro, ainda se está em fase de especulação e o organismo dará novidades no tempo certo. Esta analogia do organismo é partilhada em várias frentes por Pedro e Francisco, com quem falámos separadamente. “Eu e o Pedro sempre olhámos para esta empresa como um movimento, um organismo que vai assumindo uma dada personalidade e maturidade. Nunca olhámos para nós e para aquilo que fazemos como uma negócio ou uma empresa. O que fazemos é um exercício das nossas motivações mais profundas, na medida do possível, porque obviamente o dinheiro tem um papel nisso.”
Como vamos ver no final deste aglomerado de entrevistas, tanto Francisco como Pedro, são ativistas idealistas que por acaso escolheram a arquitectura para defender ideias e ideais. Francisco explica o conceito: “Acho que o embate com o estabelecido é uma constante na história, é uma constante na vida das pessoas inconformadas (no bom sentido), pessoas que sentem responsabilidade por um bem comum. Na natureza vê-se isso, espécies que têm a função de abrir trilhos alternativos. Eu vejo isso nas minhas galinhas, animais jurássicos com quem aprendo muito.”
Chegou a altura de Pedro nos explicar a origem do Objecto Circular Não Identificado que os visitantes da sala de provas do Esporão não conseguem esquecer. “Eu aí comecei a esticar um bocadinho a corda, porque tentei promover um espaço que não tivesse identidade. É muito difícil hoje em dia, dentro de uma empresa, as pessoas aceitarem isso. O normal é dizerem ‘eu quero uma sala de reuniões. Eu quero uma sala de provas. Eu quero uns escritórios.’ E eu vim dizer que queria uma espaço sem função. Ou dito de outra maneira, com várias funções. O espaço que tínhamos era tão interessante em si só, que já apetecia visitá-lo. Como tirar partido disso?”
Era necessário criar uma sala de provas, uma garrafeira da empresa, uma garrafeira para o enoturismo e uma local de armazenamento permanente. “Estamos a falar de um sitio, onde passam turistas, trabalhadores e porta-paletes. Portanto fazer conviver tudo no mesmo espaço é um desafio. Foi aí que surgiu essa mesa que não é uma mesa, é uma coisa meia esquisita, uma escultura, uma peça que está ali para perturbar um bocadinho as pessoas, por não conseguirem perceber o que é, mas de repente metes uns bancos, acende-se uma luz, pões uma garrafa em cima da mesa e rapidamente sabes que é uma mesa de provas.”
A mesa é exactamente igual ao candeeiro que está por cima, e “cada objecto daqueles pesa uma tonelada. Essa gravidade, essa tensão, promove a ambiguidade”.
A mesa-candeeiro da ambiguidade foi a estreia de João Pacheco, o responsável pela produção de maquetes e projectos artísticos da Skrei. Sempre que ao longo do dia ouvimos a expressão “lá em baixo” é uma referência ao local onde o encontramos, na oficina que fica na cave do escritório. “Foi a primeira maquete que fiz para a Skrei, tudo em folha de madeira. Foram coladas uma a uma dentro de um molde e ficou igual ao final. São 4 peças iguais encaixadas (candeeiro e mesa) que demorei uma semana e meia a fazer, mas lá está, depois de feito, o arquitecto só tem de se sentir realizado.”
E o João? “Eu fico realizado assim que acabo a maquete, por acaso foi das peças que eu gostei mais de fazer. E depois o resultado final… Como é que quatro metros de mesa conseguem manter-se só com um pézinho? Esse trabalho foi o arranque para uma nova época da minha vida.” Quando o convidaram para ser o braço direito (e esquerdo) do atelier, João fazia barcos de madeira como hobby, hoje está 100% em velocidade de cruzeiro na sua função.
Andrea Roveda, o responsável pelo departamento de projecto também salienta a importância do trabalho do João. “O material está muito presente desde o inicio. Muitas vezes o projeto é desenvolvido lá em baixo e aplica-se o material que se pretende utilizar, o que ajuda a ter a percepção final. As maquetes aqui são numa escala muito maior que o costume, são 1:20, 1:05 e às vezes protótipos à escala real.”
De volta a Pedro, quisemos saber se nos 10 anos de existência da Skrei têm conseguido transmitir aos clientes a importância de saber esperar por todo o processo de investigação. “Já se zangaram connosco, outros ficaram muito contentes, mas uma coisa completamente inerente à nossa atividade e à construção das nossas opções é a manutenção e o tempo. Nós damos muito o exemplo, mais uma vez, do corpo humano. O corpo humano precisa de manutenção. Tudo precisa de uma alimentação. Enquanto for vivo e físico está tudo em aberto. Ainda há muita coisa por descobrir naquilo que é o conforto de um espaço para habitar. Os romanos, gregos, persas e egípcios tinham casas com poucas janelas, viviam com um conhecimento de construção, climatologia e conforto que nós estamos ainda muito longe de conseguir atingir.”
Pedro reforça que não só está tudo escrito como muitos desses exemplos ainda estão de pé. “Vamos lá ver e há pavimentos aquecidos com linhas de água com fumo e calor; sistemas de ventilação passivos que têm a ver com massa construtiva. Isto tudo vai contra a economia em que vivemos. Nada é eterno, tudo é efémero e tudo tem o seu tempo. Ou conseguimos lidar com a transformação das coisas ou então deixamos de ser tão vivos. As nossas mães ventilavam as casas todos os dias, porque estavam em casa. Nós não estamos e as casas fechadas levam à saturação do ar, acumulação de bactérias, mal estar e mau ambiente.”
Neste momento somos interrompidos pela campainha, um amigo viticultor de Foz Côa veio à Skrei, deixar umas garrafas de vinho e aí percebemos que este estamos num atelier-relicário-oficina-armazém-de-vinho. “Antigamente vivia-se e dependia-se mais da casa, a casa era uma extensão do corpo, havia as lojas dos animais, o sequeiro, as eiras… o organismo habitacional estendia-se pela paisagem e tudo era constituinte do organismo: as pessoas, os animais, os utensílios, as ferramentas, era o contrário da economia atual em que nós dependemos de tudo menos de nós próprios.”
O elogio do passado pode parecer saudosismo, mas é puro espírito prático, como Francisco nos explica. “Os holandeses dizem: ‘faz as coisas com normalidade que isso já é loucura suficiente’, no sentido de ‘não reinventes o que não precisa de ser reinventado’. Se olharmos para trás e tentarmos perceber como é que se faziam as coisas, que alternativas é que havia por exemplo aos plásticos para fazer a impermeabilização dos edifícios? A importância do tecido encerado é uma coisa que nós perdemos completamente. Esta coisa de olhar com atenção para o receituário tradicional e tentar esmiuçar para perceber como as coisas eram feitas, acho que é uma coisa menos poética e mais pragmática. Temos ali um repositório gigantesco de criatividade.”
Francisco dá-nos uma autêntica aula de história, ao referir algo que parece esquecido nos dias de hoje: “a construção civil e a arquitetura tiveram um apogeu antes do início dos hidrocarbonetos (derivados de petróleo) portanto nós temos uma tradição de construção que vem desde o Egito, desde a última Idade do Gelo, 11 mil anos antes de Cristo.” Até que chegámos aqui, à lógica construtiva fruto da industrialização do cimento e dos petroquímicos hidrocarbonetos. “Este império é uma coisa que está prestes a terminar, porque não é sustentável. Como é que é possível não se olhar para há 100 anos e ir buscar esse repositório? É uma coisa irracional. Temos de fazer isso da forma mais intensa possível porque depois o conhecimento vai desaparecendo.”
Aqui a conversa passa para o maravilhoso domínio da natureza, reino animalia, classe insecta, mais concretamente “a descoberta da própolis (uma cera resinosa que as abelhas produzem para matar tudo o que é fungos e bactérias e selar a colmeia e até para proteger dos fogos). É um material compatível com tudo: argamassas, madeiras, vernizes, e que tem características incríveis, por alguma coisa o Stradivarius usava própolis nas suas receitas de violinos… A mesma coisa com a cera de abelha, um impermeabilizante que respira. A chuva não entra, mas a humidade, o vapor de água sai, o que para a construção é vital. As pessoas esquecem que o ar é um fluído, como a água, que está carregado de vapor.”
Quando um atelier possui colmeias e pensa assim, a forma de lidar com os materiais e com a construção muda por completo, algo que poderia ser definido pela frase da arquitecta e professora do M.I.T. Neri Oxman: ‘eu só tenho um cliente: a natureza.’ “Imagina que somos engenheiros de oceanários e aquários, temos que perceber alguma coisa sobre a natureza da água. Na construção e na arquitetura temos de conhecer o ar. Nós estamos banhados em ar, navegamos o ar que é transporte de vapor de água. Este talvez seja o fator mais fundamental na nossa atividade. Costumamos brincar que os edifícios são feitos são feitos 99,9 % de ar e o resto são materiais rígidos.”
Francisco e a sua calma assertiva lembra-nos Bruce Lee, quando meditou sobre a maleabilidade da água: ‘Se deitas água num bule de chá, ela torna-se o bule de chá. A água pode fluir ou pode partir. Sê água, meu amigo.’ “Levar a vida devagar não é lentidão, é reconhecer a importância das coisas. É dar importância a cada passo, a cada pessoa, a cada desafio que temos. Isto de levar a vida muito depressa é um desequilíbrio nas nossas prioridades. De repente todos os momentos têm de ser aproveitados e esgotados ao máximo, depois gera-se um vazio. Com o frenesim de se dar o máximo de importância a tudo, perde-se a essência e não se dá a atenção que se devia dar.”
Neste ponto da conversa falámos da permanência impalpável das coisas, ou melhor: sobre o antes e depois na arquitectura. “Quando as pessoas olham para um edifício estático que existe há 200 anos, 10 mil anos, esse é o caráter de permanência que é reconhecido, mas nós olhamos para o impacto invisível, impalpável, social, cultural e natural que esta atividade tem. É uma dimensão avassaladora que ainda está por ser discutida e interpretada. Quando isto tudo converge na nossa atividade presente, dá-nos aquele estado de permanência que não tem tempo.”
O arquitecto-ativista continua a sua explicação, referindo que o património de uma construção não é necessariamente o que se constrói, dando o exemplo de um edifício em tijolos de cânhamo, seguramente o primeiro em Portugal. “Ao optarmos por construir em cânhamo, temos consciência que estão ali oito a dez hectares de território que foi rejuvenescido, porque o cânhamo é uma planta que faz essa recapacitação do território da paisagem. Traz azoto, muito carbono, permeabilização das raízes e do solo. Falar em construção em cânhamo é falar de água e de biodiversidade, de desenhar uma rede de relações e de valores importantes e positivas. Este é o caráter de permanência da construção civil. Para a produção de uma tonelada de betão armado estamos a emitir uma tonelada de dióxido de carbono para a atmosfera. Esse dióxido de carbono é a permanência da arquitetura e vai muito para além daquilo que nós vemos edificado. Então eu acho que trabalhar o antes e o depois da obra tem a ver com a consciencialização das ligações que se promovem e que se apagam na feitura de um edifício. Ligações essas que depois perduram e muitas que vêm de trás que são reforçadas ou são remodeladas.”
Para saber mais sobre tijolos em cânhamo, blocos de terra compactados (btc) e ideias loucas falámos com o engenheiro de materiais César Cardoso, um dos experimentalistas de serviço da Skrei. “Eu venho da área científica. Enquanto engenheiro civil já trabalhei na universidade, dei aulas e estive em investigação. Para mim é muito importante colocarmos logo em cima da balança três coisas: a parte económica, a sustentabilidade e a exequibilidade da coisa. Só depois desses três pilares estarem muito bem trabalhados é que avançamos.”
Com os blocos de terra usados no Esporão, César teve mais de dois meses a testar cerca de 15 misturas de terra com estabilizantes à base de cal, até que uma shortlist seguiu para testes na Universidade do Minho e só posteriormente se chegou a uma solução final que cumpria todos os requisitos. “Aquilo que diz respeito à garantia da qualidade do produto recorremos a serviços externos.”
Como é que começa cada processo de investigação para novos materiais? “Começa com uma ideia que, à partida, pode parecer louca. Nesse momento faço uma filtragem à loucura da ideia para perceber se aquele material, com aquelas propriedades específicas, poderá dar para isto ou para aquilo. A partir daí limitamos. Normalmente as ideias vêm do Pedro ou do Francisco, umas vezes com vertente tecnológica e outras mais artística. Na Skrei estamos sempre com desafios novos. Desenvolvemos uma tecnologia e podemos escolher massificar, mas não, vamos atrás de uma tecnologia nova com o mesmo material e isso é…” …um pouco louco? “(risos) De certo modo, sim.” Esta é uma das características fundamentais deste bando à parte, todas as soluções da Skrei são open source, o que aprendem no terreno não é para vsender, é para partilhar.
Ao fim da tarde Pedro Taborda chegou ao atelier para a última conversa do dia. “Sou engenheiro civil e faço a gestão e a coordenação das obras.” Claro que uma construção Skrei tem desafios extra. “A maior parte da construção civil segue regras standard, as obras da Skrei fogem totalmente a esse “standartismo”. A grande dificuldade é gerir fornecedores e equipas da obra que primeiro têm de experienciar os materiais e experimentar as nossas soluções construtivas. Eles nunca conseguem perceber bem quais são os rendimentos de trabalho que têm. As equipes de obra estão sempre focadas no tempo que se traduz em dinheiro, no fundo é o ganha-pão deles.”
A função do Pedro é aquela mais esmagada pelos tempos e pelo desconhecido, portanto torna-se quase obrigatório trabalhar com equipas que lidem bem com o inesperado. “Não é qualquer empreiteiro que tem estofo para trabalhar connosco e com a capacidade e dinâmica que nós às vezes precisamos nas nossas obras. Isso é muito verdade e portanto acaba por ser uma relação muito intuitiva. Nós quase que reconhecemos que estamos bem para trabalhar uns com os outros. O ideal numa obra seria fazê-la depois de estar feita! Essa seria a obra em que tudo corria lindamente. Mas até aí uma obra Skrei seria diferente. Se voltássemos a repeti-la não seria a mesma obra. Esse é um ponto interessante desta empresa.”
O perfeito, ao nível da construção seria ter a grua mais orgânica de sempre. “Em relação às maquetes que faz. o João, com os seus dois braços, é uma grua enorme. Na obra também temos as gruas, mas infelizmente não são como ele. Se tivéssemos um João gigante para fazer as nossas obras, então era do caraças (risos).”
Em termos estéticos ‘perfeição’ não é o que a Skrei quer na fotografia, quem o diz é Lara. “Em arquitectura há muito a expectativa que as imagens ‘corrijam’ a realidade. Na Skrei não há essa preocupação. Há uma aceitação total daquilo que não são defeitos, são características que existem nos espaços, porque faz sentido que assim seja. Portanto não mudamos algo que esteticamente pode ser condenado, como não ser totalmente branco ou totalmente recto.”
E assim terminamos esta súmula sumarenta de várias horas de conversa à volta de uma arquitectura em estado líquido, debruçados sobre soluções tão em aberto que “muitas vezes é o serralheiro (Augusto) que apresenta a solução mais apta” como conta Andrea. Na Skrei não há intervenções estanques, delimitadas pela especialidade, o trabalho é orgânico e os projectos respiram através das escolhas e dos materiais que assumem as memórias das mãos que construíram, constroem e continuarão a construir, numa continuidade que respeita o lugar e o tempo das coisas.
SKREI
Arquitectura líquida
Entrevista realizada dia 3 de Julho de 2019 no atelier da SKREI, no Porto.
A Skrei não é o típico atelier de arquitectura, logo a começar pelo nome. Poderia chamar-se Jervell & Adão da Fonseca Arquitectos mas a escolha recaiu numa tipologia de bacalhau. À medida que a nossa conversa se edificou, a várias vozes e mãos, percebeu-se que este bando à parte rejeita o pré-definido, pré-fabricado e pré-cozinhado. Defendem a arquitectura integrada, um modelo inspirado no passado, onde a cooperação entre artistas, artesãos e construtores resulta fluida e natural.
Entre os conversadores estiveram Pedro Jervell e Francisco Adão Fonseca, os dois arquitectos e amigos que fundaram a Skrei, o milanês Andrea Roveda, responsável pelo departamento de projecto, César Cardoso, o cientista de serviço que trata da investigação e prototipagem tecnológica, Pedro Taborda, engenheiro civil que tem a difícil tarefa de gerir e dar um fim às obras, Lara Jacinto, o elemento atrás da câmara fotográfica e à frente da comunicação e João Pacheco, dono dos braços armados da produção de maquetes, a alma em construção de todos os projectos. Após um dia intenso de troca de palavras, sem nunca sairmos do bairro portuense do Bonfim, ficámos com a sensação de ter aprendido mais sobre humanismo, sustentabilidade, experimentalismo, subjectividade, ativismo e galinhas, do que sobre projecto, mas o erro talvez resida na surpresa, afinal de contas tudo isto é arquitectura.
"O que nós gostamos de fazer, é deixar as coisas em aberto, não fechar, não definir as coisas." Pedro Jervell"
"Uma casa pode ser para viver, pode ser uma escultura, pode ser um objecto de passagem, pode ser um manifesto". Pedro Jervell"
"A maquete não é uma representação da realidade, é um acto de demonstração que cria empatia e um alinhamento". Francisco Adão da Fonseca"
"Há ali obviamente questões de luz, um rasgão no edifício que é um testemunho da passagem do tempo". Pedro Jervell"
"Nada é eterno, tudo é efémero e tudo tem o seu tempo". Pedro Jervell"
"Nós na construção e na arquitectura temos de conhecer o ar". Francisco Adão da Fonseca"
"Não reinventes o que não precisa de ser reinventado". Francisco Adão da Fonseca"
Foi o avô de Pedro quem trouxe o nome Jervell da Noruega para Portugal, um pormenor biográfico que deu origem à ideia de homenagear os laços salgados entre os dois países. “O bacalhau definiu a economia, a cultura, a sociedade e a alimentação do povo português durante muito tempo, basta dizer que tínhamos uma frota enorme, a frota branca.” Todos os anos por volta de Março, pesca-se e come-se skrei, um bacalhau com denominação de origem controlada que se come fresco, em plena época de desova. Curiosamente os noruegueses apanham-no à linha, como a antiga faina maior dos portugueses. “E portanto, com a concordância do meu sócio, decidimos que era interessante um nome mais abstracto, que abrisse a indefinição das coisas. Entrando dentro da filosofia do nosso trabalho, o que nós gostamos de fazer, é deixar as coisas em aberto, não fechar, não definir as coisas. A complexidade e a subjetividade são fatores que nos atraem. Acreditamos que não existe uma definição própria para seja o que for, uma casa pode ser para viver, pode ser uma escultura, um objecto de passagem, um manifesto.”
Foi o avô de Pedro quem trouxe o nome Jervell da Noruega para Portugal, um pormenor biográfico que deu origem à ideia de homenagear os laços salgados entre os dois países. “O bacalhau definiu a economia, a cultura, a sociedade e a alimentação do povo português durante muito tempo, basta dizer que tínhamos uma frota enorme, a frota branca.” Todos os anos por volta de Março, pesca-se e come-se skrei, um bacalhau com denominação de origem controlada que se come fresco, em plena época de desova. Curiosamente os noruegueses apanham-no à linha, como a antiga faina maior dos portugueses. “E portanto, com a concordância do meu sócio, decidimos que era interessante um nome mais abstracto, que abrisse a indefinição das coisas. Entrando dentro da filosofia do nosso trabalho, o que nós gostamos de fazer, é deixar as coisas em aberto, não fechar, não definir as coisas. A complexidade e a subjetividade são fatores que nos atraem. Acreditamos que não existe uma definição própria para seja o que for, uma casa pode ser para viver, pode ser uma escultura, um objecto de passagem, um manifesto.”